Logo no início de seu voto, na sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) de quarta-feira (20/11), disse o ministro Dias Toffoli:
“Aqui não está em julgamento em nenhum momento o senador Flávio Bolsonaro. Em nenhum momento está aqui. A decisão que proferi a respeito da suspensão foi com base na determinação legal do novo CPC (Código de Processo Civil), que no artigo 1035, parágrafo 5º, diz que, havendo repercussão geral, o relator pode suspender todos os feitos em andamento. Mas como envolvia matéria criminal, além de suspender, eu suspendi a prescrição também.”
Pois é. Mas o problema é que isso era – e continua sendo – ilegal. O que Toffoli fez foi rasgar uma lei (a lei nº 9.613/98, conhecida como “Lei de prevenção à lavagem de dinheiro”), sem que o STF a considere inconstitucional, paralisando todas as investigações do Brasil com base em dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), da Receita ou do Banco Central.
Algo muito bom para os corruptos, para as milícias e para as quadrilhas de traficantes – para não falar nos sonegadores.
Toffoli fez isso a pedido de Flávio Bolsonaro e apenas com um objetivo: impedir que Flávio Bolsonaro e o faz-tudo de seu pai, Fabrício Queiroz, fossem investigados pela polícia e pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, pelas transações bancárias suspeitas que o Coaf detectou.
Em seguida, também na quarta-feira, disse Toffoli:
“No caso específico do senador Flávio Bolsonaro, está suspenso o caso dele por uma determinação numa reclamação em que é relator o ministro Gilmar Mendes. Não está suspenso neste RE (recurso extraordinário, que é a classe processual do caso julgado hoje). É bom afastar essa outra lenda urbana. Não está em julgamento neste RE nenhum caso do senador Flávio Bolsonaro. Não é objeto deste julgamento.”
Não é verdade. E o primeiro a apontar isso, na quarta-feira, foi o procurador geral da República, Augusto Aras, na sessão do STF, e na frente (aliás, ao lado) de Toffoli:
“O objeto original deste feito era a possibilidade ou não de os dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pelo Fisco, serem compartilhados com o Ministério Público para fins penais, sem a intermediação do Poder Judiciário (Tema 990 da repercussão geral).
“Ao deferir o requerimento apresentado pelo Senador Flávio Bolsonaro, o Ministro Dias Toffoli ‘ampliou’ o tema objeto deste RE e nele incluiu, também, a possibilidade ou não de outros órgãos de fiscalização e controle, como o Coaf, o Bacen, a CVM e outros, compartilharem dados acobertados por sigilo com o Ministério Público, sem a intermediação do Poder Judiciário.
“Essa ampliação ofende o Regimento Interno desta Corte, que atribui ao Plenário Virtual definir se um tema tem ou não repercussão geral. Isso não pode ser decidido monocraticamente.”
É evidente que nenhum ministro, sozinho, pode decidir algo obrigatório para todo o Judiciário – pois é isso o que se chama “repercussão geral”.
Nem muito menos decidir que um caso – por exemplo, o de Flávio Bolsonaro – faz parte de um “tema de repercussão geral”.
Mas foi isso o que Toffoli fez. Foi nesse processo (Recurso Extraordinário nº 1.055.941/SP) – um processo sobre sonegação fiscal por parte dos donos de um posto de gasolina em Americana, interior de São Paulo – que Toffoli aceitou o pedido de Flávio Bolsonaro, e incluiu seu caso na “repercussão geral”, paralisando investigações sobre corrupção, tráfico e milícias em todo o país.
O leitor pode achar que isso é coisa de maluco: o processo nada tinha a ver com Flávio Bolsonaro, nem com o Coaf, que Jair Bolsonaro alegava que agira ilegalmente ao transmitir informações sobre o seu filho.
Sem dúvida, o leitor não estará destituído de razão por assim pensar.
Mas é onde se chega, quando o objetivo não é a justiça.
Toffoli, então, aceitou o pedido de Flávio Bolsonaro, incluindo seu caso nessa suposta “repercussão geral”, como se um caso com repercussão na família Bolsonaro fosse a mesma coisa que um “tema de repercussão geral” para o STF.
Um ministro – e presidente – do STF passou por cima da lei para proteger o filho de Bolsonaro das investigações. Se isso não é grave, não sabemos o que é grave para o chamado Estado Democrático de Direito.
No voto de Toffoli, na quarta-feira, o jeito de evitar as verdades desagradáveis consistiu na expressão “lenda urbana”.
É óbvio que o interesse social e político na discussão do STF está – devido ao próprio Toffoli – principalmente no caso Flávio Bolsonaro. Logo, trata-se de uma “lenda urbana”.
Repetiu a expressão várias vezes em seu voto. Por exemplo:
“Quem aqui é contra o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro? Temos que acabar com essas lendas urbanas, esses caluniadores.”
Já diziam os juristas da antiga Roma: cui prodest? A quem beneficia a posição de Toffoli?
Obviamente, aos corruptos e lavadores de dinheiro sujo.
Mas, diz Toffoli, essa é outra “lenda urbana”.
Só não conseguimos saber por que as “lendas urbanas” seriam piores que as “lendas rurais”…
Fora isso, o interminável voto de Toffoli foi uma coleção de tudo o que não tinha importância para o que estava se decidindo. Bertrand Russel disse uma vez que se todo sujeito que publicasse um livro levasse automaticamente três meses de cadeia, só os escritores escreveriam livros. Deveria haver uma regra semelhante para juristas e supostos juristas.
Entretanto, se existe algo completamente contrário à Justiça – em todas as acepções do termo – é o juiz dizer que está fazendo alguma coisa, quando está fazendo outra, isto é, o contrário.
Dias Toffoli, na quarta-feira, terminou seu voto dizendo que dava “provimento” ao Recurso Extraordinário (assim são chamadas as apelações ao STF) do Ministério Público.
A posição do Ministério Público, bem explicitada pelo procurador geral Augusto Aras, era a de que a Receita, o ex-Coaf (atual UIF) e o Banco Central podem encaminhar casos suspeitos de lavagem de recursos ilícitos, sem necessidade de autorização judicial, aos órgãos de investigação: a Polícia e o próprio Ministério Público.
A posição de Toffoli era e foi contra: somente “informações e movimentações globais” poderiam ser passadas aos órgãos de investigação. Outros documentos – extratos bancários e declarações de Imposto de Renda, por exemplo – somente com “autorização judicial”.
Então, se ele era contra o recurso do Ministério Público, como poderia dar “provimento” a ele – ou seja, ser a favor do recurso?
A falta de lógica incomodou – com toda razão – o ministro Alexandre de Moraes, que apontou, exatamente, essa contradição, seguido pelos ministros Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio Mello e até Ricardo Lewandowski, que pediram esclarecimentos.
Toffoli, então, depois de pedir desculpas por não ter sido claro, reafirmou que é a favor do “compartilhamento de dados” – exceto aqueles genéricos e inúteis para qualquer investigação – somente com decisão judicial. Em seguida, encerrou a sessão para que continuasse na quinta-feira.
Considerando que ele começou a ler o seu voto às 10h30min e terminou às 18h10min – com dois intervalos – é um prodígio que não tenha conseguido ser claro. Se não o foi, é porque o objetivo do voto não era ser claro.
Mas isso pode funcionar na escola da Dona Tetéia (ou até em outras mais renomadas), mas não no STF, formado por gente mais esperta, com alguns anos de jurisprudências e doutrinas.
C.L.