O depoimento de Lula, na quarta-feira, diante da juíza Gabriela Hardt, da 13ª Vara Federal de Curitiba, terminou, depois de três horas, de um modo bastante infeliz para o réu no processo do sítio de Atibaia.
Porque, toda a pantomina de Lula foi dirigida para fugir da seguinte questão: para quem a Odebrecht e a OAS pagaram as obras do sítio?
Por que essas duas empreiteiras pagariam obras para um sítio, que, segundo Lula, pertencia ao filho de um amigo?
Em que interessava à Odebrecht e à OAS pagar obras – no valor de R$ 1,02 milhão – para Fernando Bittar (e seu sócio, Jonas Suassuna)?
Bittar (ou Suassuna) jamais fizeram alguma coisa pela Odebrecht ou pela OAS. Pelo relato de Bittar, nem tinham relações com a cúpula dessas empresas.
Então, por que elas gastariam R$ 1,02 milhão em obras no sítio de dois desconhecidos?
Mas, segundo Lula, o sítio não é seu.
A Procuradoria provou que os carros a serviço de Lula fizeram 546 viagens ao sítio ou do sítio, entre 2011 e 2016 (uma vez a cada quatro dias).
Mas, disse Lula, o sítio não é dele.
[Para o leitor que quiser conhecer o conjunto das provas contra Lula nesse processo, v. Denúncia do MPF.]
Lula, aparentemente, inverteu a lógica de sua anterior defesa, que colocava a responsabilidade sobre sua falecida esposa, Dª Marisa Letícia. Mas foi apenas uma súbita aparência, que serviu para que, em seguida, insistisse nessa mesma linha:
PROCURADOR: Existe a modalidade “receber” no crime de corrupção, senhor ex-presidente. E eu pergunto várias vezes, por isso que eu insisti com o senhor. O senhor, depois que tomou conhecimento de que essas obras foram feitas para o senhor, o senhor não quis procurar as pessoas para pagar por elas. O senhor confirma?
LULA: As obras não foram feitas para mim. Portanto eu não tinha que pagar porque eu achei que o dono do sítio tinha pago.
PROCURADOR: Mas o dono do sítio [Fernando Bittar] falou que não ia pagar porque achou que o senhor ia pagar.
LULA: Mas se ele falou, paciência.
PROCURADOR: Que não é delator, por sinal…
LULA: Eu sei, mas se ele falou que não pagou achando que a Marisa tinha pago, eu não tenho mais como perguntar. O que eu acho grave que você deveria perguntar é por que o Léo [Pinheiro, da OAS] não cobrou. Por que o Léo não cobrou? O cara que tem que receber é o cara que vai todo santo dia cobrar. O cara que tem que pagar, se puder nem passa perto.
A pergunta já foi respondida por Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, em seu depoimento, inclusive no mesmo processo: ele não cobrou de Lula os gastos com o sítio porque era propina, em troca do superfaturamento nos contratos com a Petrobrás (v. Ex-presidente da OAS: “não havia nenhuma dúvida que Lula era o dono do sítio”).
COMPOSTURA
Todo o depoimento de Lula foi uma inversão da lógica, a partir do primeiro momento, em que a juíza Hardt teve que lembrá-lo de quem estava sendo interrogado:
JUÍZA HARDT: Senhor Luiz Inácio Lula da Silva, vou chamá-lo de ex-presidente. Posso chamá-lo de ex-presidente?
LULA: Pode.
JUÍZA HARDT: O senhor sabe do que está sendo acusado neste processo, não sabe?
LULA: Não. Não sei. Eu gostaria de pedir, se a senhora pudesse me explicar, qual é a acusação?
JUÍZA HARDT: O senhor tem dois conjuntos de acusação. A primeira parte da acusação diz respeito à corrupção, que o senhor teria recebido vantagens indevidas da Odebrecht e da OAS relacionadas aos contratos que eles têm com a Petrobras, e um segundo conjunto de atos, que seriam atos de lavagem de dinheiro, relacionados à reforma do sitio em benefício ao senhor e sua família, que foram feitas, num primeiro momento, pelo Bumlai, no segundo momento pela Odebrecht e num terceiro momento pela OAS. Um resumo muito sintético seria isso.
LULA: Não, não, não, não. Eu imagino que a acusação que pesava sobre mim é que eu era dono de um sítio em Atibaia.
JUÍZA HARDT: Não, não é isso que acontece. É ser beneficiário de reformas que foram feitas. A acusação passa pela relação de o senhor ser dono do sítio, mas a acusação imputada é de o senhor ser beneficiário das reformas que foram feitas por estas três pessoas que lhe falei: Bumlai, Odebrecht e OAS.
LULA: Doutora, eu só queria perguntar para o meu esclarecimento, porque eu estou disposto a responder toda e qualquer pergunta: eu sou dono do sítio ou não?
JUÍZA HARDT: Isso é o senhor que tem que responder, doutor. Não eu. E eu não estou sendo interrogada.
LULA: Quem tem que responder é quem me acusou.
JUÍZA HARDT: Doutor, senhor ex-presidente, isso é um interrogatório e se o senhor começar neste tom comigo a gente vai ter problema. Então, vamos começar de novo, eu sou a juíza do caso, eu vou fazer as perguntas que eu preciso para que o caso seja esclarecido, para que eu possa sentenciá-lo ou algum colega possa sentenciá-lo. Então, num primeiro momento, eu quero dizer que o senhor tem todo o direito de ficar em silêncio. Mas, neste momento, eu conduzo o ato.
Mais adiante:
PROCURADOR: No caso do tríplex, o senhor alegava que as obras de melhorias do apartamento não foram para o senhor, sob o argumento de que o senhor nem ia lá. Agora, o senhor constantemente estava no sítio, mantinha lá bens pessoais de toda ordem e os empresários alegam que a obra era para o senhor. Eu gostaria do senhor qual é a explicação que o senhor tem para isso, senhor ex-presidente?
LULA: Eu vou dar a explicação, primeiro do triplex: o triplex não era, não é e não será. A história vai mostrar o que aconteceu nesse processo.
PROCURADOR: E o senhor alegou que não ia lá, não é isso?
LULA: Segundo, o sítio, eu vou lá porque o dono do sítio me autorizou a ir lá. Tá? Que bens pessoais que eu tinha no sítio? Cueca, roupa de dormir, isso eu tenho em qualquer lugar que eu vou. E nenhum empresário pode afirmar que o sítio é meu se ele não for meu.
PROCURADOR: Mas eles afirmaram que fizeram obras para o senhor.
LULA: Ah, meu Deus do céu, sem eu pedir. Você não acha muito engraçado alguém fazer uma obra que eu não pedi e depois alguém negociar uma delação sob a pressão de que é preciso citar o Lula. Sabe, e vocês colocam isso como se fosse uma verdade? Eu até nem ia responder coisa de delator aqui, mas eu tenho muitos amigos que eu sei como é a vida na cadeia, sei como é o sofrimento, sei qual é o preço da liberdade. Eu me ative a ficar quieto. Agora eu repudio qualquer tentativa de qualquer pessoa dizer que foi feito uma obra para mim naquele sítio. Porque se o Fernando Bittar amanhã vender o sítio…
Entretanto, as obras foram feitas. E Lula não achou estranho que elas tivessem sido feitas.
Será que a Odebrecht e a OAS fizeram as obras, em 2011, porque sabiam que, em 2015, seus diretores seriam presos pela Operação Lava Jato, somente para que eles fizessem uma delação premiada?
FOTOS
Esse trecho é interessante porque pretende sustentar a versão de que a responsabilidade foi de Dª Marisa:
PROCURADOR: O sr. Léo Pinheiro [então presidente da OAS] disse que o sr. presidente o chamou no Instituto [Lula], numa certa ocasião e pediu a ele a reforma de uma cozinha no sítio de Atibaia. O sr. se recorda desse episódio?
LULA: Não é verdade.
PROCURADOR: Não é verdade?
LULA: Não é verdade.
Seria apenas palavra contra palavra, se Léo Pinheiro, em seguida a esse encontro, não tivesse ido ao sítio, para ver que obras estavam sendo pedidas – e não tivesse levado Paulo Gordilho, arquiteto e diretor da OAS, que registrou fotograficamente o encontro.
Lula poderia dizer que a ida de Pinheiro ao sítio foi por outra razão. Mas não pode dizer o mesmo da ida de Gordilho, a quem não conhecia – e que documentou de várias maneiras as obras feitas pela OAS no sítio de Lula e também no triplex, inclusive através de mensagens à sua filha, Isnaia (v. “O triplex não é meu” ou as provas que Lula garante que não existem).
A OAS, para Lula, é um problema, pois não pode dizer que foi Dª Marisa que pediu as obras dessa empreiteira no sítio (a cozinha, cujos utensílios foram comprados na mesma loja, a Kitchens, em que a OAS comprou a cozinha do triplex de Guarujá).
CORRUPÇÃO GERAL
No interrogatório de quarta-feira, Lula transferiu para a fé – ou para a crença – a existência de um esquema (aliás, mais de um) de propinas entre o PT e as empreiteiras. Quando a juíza Hardt se referiu às conta-correntes operadas pelo tesoureiro da organização, João Vaccari, disse Lula: “Eu não acredito”.
JUÍZA HARDT: O senhor não acredita, mas foi lhe dito nos outros depoimentos sobre quantidades de valores devolvidos por diretores e gerentes da Petrobrás relativos a propinas e os valores em contas bloqueadas de políticos no exterior.
LULA: Aí é caixa deles, na verdade eles ganhavam um prêmio. Nunca foi tão fácil ser ladrão nesse país. Você rouba, aí, depois, você faz a delação e fica com um terço do roubo ou dois terços do roubo.
JUÍZA HARDT: Mas, então, aconteceu?
LULA: Eu quero saber se encontraram dinheiro do Vaccari no exterior, eu quero saber se encontraram conta do PT no exterior. Por isso, quando um cidadão vem aqui e grita ‘olha, era tudo do caixa do PT, era tudo do caixa do PT’, ele está mentindo!
JUÍZA HARDT: Quando se vincula pagamento no exterior ao publicitário contratado pelo PT, o senhor não vê vinculação numa coisa com a outra?
LULA: Eu não tenho vinculação uma coisa com a outra.
JUÍZA HARDT: Eu não estou falando que o senhor tem, estou falando de propinas que são imputadas ao partido.
LULA: Veja, se o empresário resolveu corromper alguém e depositar o dinheiro a pedido do cidadão que tinha direito àquele dinheiro no exterior é problema dele. Paga pelo erro, tá? Até porque, agora, a MP aprovada no ano passado anistiou todos os ladrões que depositaram dinheiro lá fora, todos os sonegadores que depositaram foram anistiados.
JUÍZA HARDT: Sonegador pode ser, lavagem de dinheiro, não, senhor ex-presidente.
LULA: O que eu quero dizer é que toda vez, é a segunda vez, o Léo (Pinheiro, ex-presidente da OAS) vem aqui e diz ‘foi caixa do Vaccari’. O Vaccari fez uma carta desmentindo e o juiz Moro não aceitou. Agora, vem outra vez, ‘vai pro caixa dois’. Ora, o caixa dois virou um pote de água benta. E o Vaccari tá aqui perto, é só trazer o Vaccari. Pergunta pro Vaccari se ele quer falar.
Não é verdade que a acusação a Lula – tanto na propina do triplex quanto na propina do sítio – é baseada apenas no depoimento de Léo Pinheiro ou de Marcelo Odebrecht (v., p. ex., Sítio de Atibaia: os e-mails que provam a culpa de Lula).
Porém, a defesa que Lula apresentou sobre o esquema de propinas é, meramente, o testemunho do próprio operador das propinas do PT, João Vaccari.
Portanto, Lula está fazendo aquilo que diz que outros estão fazendo com ele.
Mas isso não responde à questão inicial: por que – ou para quem – a Odebrecht e a OAS pagaram as obras do sítio?
JUÍZA HARDT: Quem fez a reforma da cozinha?
LULA: Eu não sei quem fez, o que eu sei é que foi discutido entre o Fernando (Bittar), a mulher do Fernando e a Marisa. Precisava aumentar, que a cozinha estava pequena.
JUÍZA HARDT: O sr. não achou estranho não buscar a OAS para ressarcir? Fernando Bittar disse que o sr. e dona Marisa iam pagar. O sr. pagou?
LULA: Estamos falando de 2014, eu não era mais presidente da República. Eu nem disputava mais eleições. Eu sempre parti do pressuposto que o cara fez um serviço e alguém pagou, ou o Fernando ou a dona Marisa. Eu não estranhei porque não era uma grande empreiteira fazendo uma reforma. Era uma pessoa [Léo Pinheiro] que eu conheço há mais de 20 anos, sem falar de caixa-geral, que eu tô sabendo agora e acho que ele tinha cobrado.
Portanto, estamos agora sabendo que o presidente da OAS “era uma pessoa”. E, provavelmente, que pedir a essa pessoa para fazer as obras da sua cozinha não era problema, “porque não era uma grande empreiteira fazendo uma reforma”, apesar da “pessoa” ser o presidente da OAS.
NATUREZA
De certa forma, não deixa de ser impressionante a desinibição de Lula para suas “narrativas” – ou seja, para mentir.
Aliás, é inexato falar de desinibição. Mais parece que a mentira se tornou a primeira natureza de Lula:
LULA: Eu não sei porque cargas d’água no caso da Petrobrás houve essa questão de jogar suspeita sobre indicação de pessoas. É triste, mas é assim. Possivelmente por conta de que o delator principal era o Youssef que era amigo do Moro desde o caso do Banestado. É isso. Lamentavelmente é isso.
Alberto Youssef foi condenado por Sérgio Moro, no caso do Banestado – um caso que foi abafado por iniciativa de Lula, que tornou ministro um dos investigados, Henrique Meirelles, para conferir, a ele, foro privilegiado. Além disso, na CPI do Banestado, foi o relatório do PT que impediu as investigações de prosseguirem (v. Meirelles: empresas fantasmas, roubo e fraude acoitados por Lula e Temer).
Mas Lula não vê problemas em atribuir a Moro uma suposta “amizade” com um escroque. O que fez a juíza Hardt reagir:
JUÍZA HARDT (para o advogado de Lula): Dr., por favor. Ele não vai fazer acusações a meu colega aqui.
LULA: Eu não estou acusando, estou constatando fato.
JUÍZA HARDT: Não é um fato, porque o Moro não é amigo do Youssef e nunca foi.
LULA: Mas manteve ele sob vigilância 8 anos.
JUÍZA HARDT: Ele não ficou sob vigilância 8 anos – e é melhor o sr. parar com isso.
Lula parou com isso.
APRESENTAÇÃO
Da mesma forma, Lula insistiu em que as provas contra ele consistiam no “PowerPoint” do procurador Deltan Dallagnol – um dos momentos infelizes da força-tarefa da Operação Lava Jato.
LULA: Tudo começou com o PowerPoint. Se o PowerPoint tivesse sido desmentido no ato que ele foi feito, vou dizer uma coisa para você, procurador. Eu, quando vi o PowerPoint, eu falei para o PT: ‘eu, se fosse presidente do PT, pediria para que todos os filiados do PT no Brasil inteiro, prefeito, deputado, abrissem processo contra o Ministério Público para ele provar o PowerPoint’.
A declaração é mentirosa de cabo a rabo. Primeiro, não é verdade que “tudo começou com o PowerPoint” de Dallagnol, apresentado em setembro de 2016.
Naquela época, a Operação Lava Jato estava, já, em sua 34ª fase, os marketeiros do PT já estavam presos, assim como José Carlos Bumlai, André Vargas, José Dirceu, João Vaccari e Renato Duque – somente para citar os mais chegados a Lula.
Segundo: Lula mandava e desmandava no PT, assim como, hoje, manda e desmanda no PT. Portanto, não é verdade que o problema foi que ele não era o presidente do partido. Aqui, é uma injustiça para com os próprios petistas.
O problema do PowerPoint de Dallagnol foi, simplesmente, que não é função de um procurador apresentar o organograma de um esquema criminoso – muito menos dizer que alguém é o “comandante máximo do esquema de corrupção” – baseado apenas, ou principalmente, em sua convicção.
Coisas desse tipo só servem para prejudicar a credibilidade das investigações – ou, o que é, no fundo, a mesma coisa, para que os criminosos se aproveitem ou tentem se aproveitar.
Mas isso não quer dizer que as provas não existissem – ou que não existam.
Lula, por sinal, abriu processo contra Dallagnol – e perdeu na Justiça.
O que não é lícito – pois constitui, no mínimo, litigância de má-fé – é recomendar aos seus correligionários que entrem, todos, com ações contra o Ministério Público, com o objetivo de sabotar a Justiça. Daí, a intervenção da juíza Hardt:
JUÍZA HARDT: O sr está intimidando a acusação assim, sr. presidente, por favor, vamos mudar o tom. O sr está intimidando, está instigando e está intimidando a acusação e eu não vou permitir.
LULA: Não, eu não estou intimidando. Eu não estou intimidando, estou contando um fato verídico.
JUÍZA HARDT: O sr está estimulando os filiados ao partido a tumultuarem o processo e os trabalhos. Se isso acontecer, o sr será o responsável.
LULA: Não, eu não estou intimidando. Eu não estou intimidando, estou contando um fato verídico.
JUÍZA HARDT: O sr está estimulando os filiados ao partido a tumultuarem o processo e os trabalhos. Se isso acontecer, o sr será o responsável.
LULA: Isso já passou, isso era 3 anos atrás.
JUÍZA HARDT: Se isso acontecer, o sr. será o responsável.
É verdade. E já aconteceu um caso semelhante: a enxurrada de pedidos de habeas corpus, todos idênticos, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), após a tentativa de soltar Lula usando os préstimos de um desembargador petista que estava de plantão no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (v. A conspiração do PT: a tropa de choque e a chicana acintosa).
C.L.
Abaixo, a íntegra do depoimento de Lula à juíza Gabriela Hardt: