A decisão da bancada do PT de apoiar o candidato Baleia Rossi (MDB) à Presidência da Câmara dos Deputados, ainda que por uma diferença pequena de votos, é representativa do amadurecimento da vitoriosa estratégia de frente ampla adotada ainda no início da atual legislatura.
Não faltaram, como ainda não faltam, entretanto, vozes dissonantes à política frentista que deverá ser o fio condutor para a derrota bolsonarista, mais uma vez, no plano parlamentar – decisiva e fundamental para o projeto de 2022.
O professor Aldo Fornazieri, por exemplo, em recente artigo sobre as eleições para a renovação da Mesa da Câmara, indignou-se com o movimento dos partidos de esquerda e de centro-esquerda, à exceção do Psol, no sentido de integrarem-se à frente ampla e democrática liderada pelo presidente Rodrigo Maia.
“Pode ser que estejamos diante de uma esquerda apavorada. Pode ser que estejamos diante de uma esquerda oportunista. Pode ser que as duas atitudes orientem as decisões desses partidos”, argumentou, referindo-se ao movimento dos partidos de oposição – PT, PDT, PSB, PCdoB e Rede.
Segundo ele, “as esquerdas vêm errando de forma crônica na avaliação de conjuntura nesses dois anos de governo Bolsonaro. O erro básico é o seguinte: Bolsonaro estaria na iminência de dar um golpe militar. Por isso, seria necessário formar uma frente antifascista. O fato é que Bolsonaro não tem e nunca teve força, nem no meio militar e nem na sociedade, para promover um golpe. As esquerdas confundiram os desejos de Bolsonaro e de meia dúzia de aloprados, que foram calados por uma canetada de Alexandre de Moraes, com a realidade objetiva”.
Fornazieri avalia que “as esquerdas entram no bloco de Maia de forma subalterna, condição que enfraquece sua autonomia e fere os princípios e a lógica da política. A lógica política recomenda que uma força política que pretende dirigir e comandar nunca deve se aliar a uma força política superior ou equipotente à sua, pois perde autonomia e o comando”, continuou em sua argumentação.
O professor, sobre o PT, vai mais longe: “parece que não aprendeu esta amarga lição: aliou-se ao PMDB inteiro no governo Dilma e perdeu o poder. Além disso, tem aquela velha história: é melhor ser derrotado com dignidade do que vencer sem honra”.
Algumas observações sobre equívocos que acabam se transformando em sofismas, alguns já muito surrados.
Inicialmente, a identificação de uma avaliação absolutamente descompassada da realidade na conceituação da verdadeira natureza de Bolsonaro e sua falange mais próxima que (des)governam o país.
Trata-se de um presidente defensor da ditadura que se impôs por longos 21 anos, bem como dos métodos utilizados à época para calar os que se opunham a ela, na esquerda e em outros amplos setores da sociedade: perseguições, cassações, prisões, tortura, assassinatos, etc.
Se houvesse correlação de forças favorável a ele, elemento que o professor parece desprezar de seus próprios manuais de sociologia política, Bolsonaro já teria, por decreto, fechado ou, pelo menos, anulado boa parte dos poderes das demais instituições da República – o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, ameaças que não faltaram ao longo do primeiro ano de seu governo, contando com o estímulo, subjacente ou declarado, do próprio presidente, assim como foram muitas as agressões à liberdade de imprensa, outra importante conquista após o fim do regime objeto da adulação bolsonarista.
Mas, cabe perguntar: por que, no momento, não há correlação de forças para o golpe de Estado e a ditadura bolsonaristas?
Exatamente devido à política de frente ampla que, com todas as dificuldades e vicissitudes, foi levada à frente, desde a eleição e posse de Bolsonaro até agora, quando a batalha principal é a da presidência da Câmara dos Deputados.
O movimento de unidade em torno da candidatura do deputado Baleia Rossi (MDB) para derrotar Arthur Lira, o candidato de Bolsonaro a presidente da Câmara, é o resultado – não o passo inicial – da política de frente ampla aplicada pelos setores que rejeitavam, rejeitaram e rejeitam o fascismo bolsonarista.
A decisão da bancada do PT deve ser saudada, portanto, como uma vitória dessa luta de mais de dois anos pela constituição de uma frente ampla em defesa da democracia.
Por isso não há correlação de forças – na sociedade, na política e entre os militares, herdeiros das gerações que deram sustentação, pelo menos em sua alta cúpula, à ditadura, para a execução de um golpe em qualquer um de seus estilos ou modelagens, o que não significa uma mudança no caráter de Bolsonaro e de seu governo – nem quer dizer que a ameaça fascista esteja definitivamente superada.
O recuo tático empreendido pelo “capitão” deveu-se a dois fatores fundamentais: o avanço das investigações sobre práticas ilícitas promovidas pelo seu entorno, especialmente o caso das “rachadinhas” que envolvem o “01”, e a necessidade de operar a “política” no velho estilo que tanto combateu cinicamente no passado, de modo a assegurar base parlamentar capaz de blindar eventual processo de impedimento.
Bolsonaro não se contenta, apenas, em ser o presidente da República. Seu perfil exige mais. Quer controlar ou, mesmo, usurpar, quando pode, as competências dos demais poderes constituídos e não aceita quando é contrariado por decisões do Legislativo, do Judiciário ou do Ministério Público. Aliás, sempre que pode, ultrapassa os limites do cargo que ocupa pela violação da Constituição ou das leis do país. Não foram poucos os decretos, iniciativas e manifestações nessa direção.
A sanha golpista e conspirativa foi, momentaneamente, para o armário, mas pode ser desengavetada a qualquer hora. As hordas histéricas de natureza fascista podem também voltar às ruas, como o fizeram no passado. Trata-se de uma questão de caráter, como a velha fábula do escorpião nos ensina.
Não por acaso, muito recentemente, Bolsonaro ameaçou recorrer à milícia para defender seu mandato, em risco, tão-somente, por ele próprio e sua trágica condução da pandemia e da economia, não sem antes avisar que, por decreto, ajudou “muita gente a comprar armas e comprar munições”.
Para bom entendedor, meia palavra basta!
Essa realidade objetiva, no entanto, da qual pode se extrair não apenas desejos do presidente, mas atos e palavras, não bastou ao professor Fornazieri, segundo o qual as esquerdas devem tratar a direita e o centro democrático da mesma forma que tratam Bolsonaro. E mais: devem disputar com esses setores a primazia da disputa no segundo turno presidencial, posto que, para o professor, Bolsonaro já teria lugar cativo nessa disputa.
É inegável que a agenda econômica desses partidos não é a mesma da oposição, mas também é verdade que boa parte dessa agenda foi preservada, inclusive o famoso tripé macroeconômico neoliberal (juros altos, superávit primário e câmbio flutuante), com maior ou menor intensidade, por governos à direita ou à esquerda nas últimas décadas.
Somente esse fato deveria representar um embaraço para introduzir a pauta econômica como critério central da aliança com o bloco liderado por Maia, como quer o professor, para evitar a subalternidade.
Felizmente, não é o que está acontecendo, mas é tudo que Bolsonaro deseja e, em grande medida, açula, procurando manter a polarização política que o ajudou a se eleger em 2018.
Seu sonho de consumo é o isolamento da esquerda numa bolha – para que ele, Bolsonaro, reúna condições mais favoráveis para derrotar seus desafetos do DEM, MDB, PSDB, etc.
Boa parte das oposições, já no início do atual governo, não permitiram que isso acontecesse e foram decisivas para impedir que a Câmara dos Deputados se tornasse um puxadinho do Palácio do Planalto.
Não era difícil prever uma catástrofe política de dimensões imponderáveis, se as oposições tivessem ficado no gueto desejado por Bolsonaro.
A estratégia mostrou-se correta na prática, mesmo que, nos primeiros dias de 2019, o atual presidente representasse apenas uma ameaça.
Hoje, a ameaça, como nunca, suprimiu direitos do povo, agrediu a soberania nacional, violou direitos, entre outras barbaridades.
A tragédia só não foi mais trágica por conta da pressão da sociedade e da maioria que se configurou no Congresso Nacional entre as oposições e a direita e o centro democrático contra o retrocesso institucional que se encontrava em marcha.
Além disso, o que seria o auxílio emergencial de R$ 600 sem essa maioria?
O que seria do trabalhador, já bastante esfolado, não fosse a redução dos danos na lei de proteção do trabalho e da renda?
O que seria do mundo cultural não fosse a aprovação da Lei Aldir Blanc?
O que seria da educação não fosse a nova lei do Fundeb?
Para não cansar o leitor, ficamos por aqui nos exemplos que demonstram, de forma cabal, a justa política de aliança empreendida pelas oposições que o professor, agora, tanto condena diante da possibilidade de infringir a Bolsonaro nova derrota na sucessão de Maia.
Tendo demonstrado sua correção até o momento, porque fazer um cavalo de pau nessa estratégia? Em nome de uma suposta “autonomia” e “comando”? “Autonomia em relação a quê? Comando do quê?
Outro grave equívoco é afirmar que as oposições entram no bloco de Maia de forma “subalterna”, num claro sinal de ignorância do documento firmado pelos partidos e aceito pelo candidato Baleia Rossi – base de um regulamento político que vai presidir as relações com essas forças políticas.
Ora, todos sabem que a oposição, isolada, não tem condições de eleger o próximo presidente da Câmara dos Deputados. Seus votos, entretanto, serão decisivos para impedir a vitória do bolsonarista Arthur Lira.
Por que, então, facilitar a política de cooptação hoje em curso com o uso despudorado e sem-vergonha, para o dizer o mínimo, de importantes cargos públicos e generosas fatias do orçamento?
A política de “marcar posição” no primeiro turno para derrotar Lira no segundo seria desastrosa, pois, nesse cenário, o mais provável é que o candidato bolsonarista seja favorecido pelo efeito “estouro da boiada”, na medida em que tenderá a ser o mais votado já na primeira contenda, com possibilidade de vencer caso consiga amealhar 50% mais um dos votos.
Hoje, diante dos extraordinários retrocessos no terreno político, econômico e social provocados pelo (des) governo Bolsonaro, em pleno recrudescimento da pandemia, a aliança é ainda mais imprescindível do que foi há dois anos atrás, quando os projetos de desmonte do Estado Nacional e dos direitos do povo eram apenas projetos.
A política de contenção da onda bolsonarista deve se fortalecer ainda mais, principalmente depois dos resultados da eleição municipal em que os candidatos alinhados com Bolsonaro foram fragorosamente derrotados, inclusive – e principalmente – nas capitais.
Não há porque renunciar à política de frente ampla e, sim, intensificá-la e fortalecê-la, pois o caráter do governo continua o mesmo, não mudou, e a estratégia frentista tem infringido importantes e qualitativas derrotas a Bolsonaro – na sociedade, no Parlamento e na Justiça.
Essa é a “realidade objetiva” que o professor parece não ver, da qual não cabem sofismas, a não ser para revelar o que Lênin já denunciava, há exatos cem anos atrás, como “doença infantil”.
MAC