A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contesta a versão da Polícia Militar sobre as ações que deixaram ao menos 16 mortos na Baixada Santista e 58 presos, desde a última sexta (28). Para Flávio Roberto Campos, coordenador do núcleo de direito antidiscriminatório da comissão, os PMs combinaram uma narrativa única de “legítima defesa” nos registros das ocorrências que terminaram em morte.
“São denúncias de violações de direitos humanos, tortura e execuções. Mas os policiais envolvidos nessas ações combinam a mesma versão em todas as ocorrências com morte”, diz a OAB.
No caso, os boletins de ocorrência registram sete supostos confrontos com a PM no Guarujá. Nos documentos, os policiais afirmam que todos os suspeitos morreram após reagirem às abordagens. Os PMs afirmam que os suspeitos foram baleados porque apontaram arma ou dispararam na direção deles, mas essa versão é contestada por moradores.
As mortes ocorreram após o assassinato de um soldado da Rota na última quinta-feira (27). Dos 7 mortos mencionados nos BOs, 3 chegaram a disparar contra os agentes, segundo os relatos dos policiais. Os outros quatro teriam apontado a arma para os PMs ou sacado a arma da cintura. Os policiais alegam ter “revidado injusta agressão” após ficarem na mira de suspeitos.
Moradores do Guarujá, no litoral paulista, questionam a versão oficial sobre as mortes. Segundo os relatos, agentes da Rota entraram encapuzados nas comunidades, invadiram casas, forjaram flagrantes e torturaram pelo menos um dos suspeitos. Eles teriam prometido matar 60 pessoas em comunidades na cidade.
Policiais relataram que o ambulante Felipe Vieira Nunes teria atirado neles, que revidaram. Moradores contradizem os policiais e acusam os policiais de tortura seguida de assassinato. Fábio Oliveira Ferreira, segundo o BO, teria tentado sacar a arma da cintura, mas foi “neutralizado” com três tiros de fuzil e dois de pistola. Já Cleiton Barbosa Moura, teria atirado antes de morrer. Rogério Andrade de Jesus, teria se recusado a largar a arma e foi baleado por um tiro de fuzil em seguida.
“Eles relatam que um suspeito caminha na rua até que saca a arma, mas o policial é sempre mais rápido. Os moradores contestam essas versões padronizadas que colocam todas as vítimas na condição de criminosos e dizem ouvir gritos de tortura. Fica a palavra da polícia contra a palavra dos moradores. Depois que morre um policial da Rota, aparece uma grande quantidade de ocorrências de reação policial contra pessoas que estavam caminhando na rua ou paradas em vielas perto das suas casas. São narrativas protocolares, que levantam suspeitas”, continua o advogado.
“A polícia diz que está combatendo o crime organizado, mas não há uma testemunha sequer que comprove isso. O que sabemos é que estão matando as pessoas que têm antecedentes criminais. Só queremos que a polícia pare de matar”, afirmou o coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB.
RELATOS DA LETALIDADE
Essa atual operação da PM no litoral paulista já é a mais letal no estado de São Paulo desde os “crimes de maio” de 2006, quando as forças de segurança reagiram aos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) e mataram ao menos 506 pessoas, segundo a Defensoria Pública. A ação deste ano superou a “operação Castelinho”, que em 2002, deixou 12 mortos.
A Operação Escudo começou em 28 de julho, e a previsão é a que continue até 28 de agosto. Ao todo, 58 suspeitos foram presos, entre eles, Erickson David da Silva, apontado pelas autoridades como autor do disparo que matou o soldado da Rota. A defesa do homem negou que ele tenha cometido o crime.
Entre os relatos dos moradores, divulgados pelo portal UOL, alguns chamam a atenção pelas denúncias das ações policiais. Em um, ao voltar do trabalho, o homem viu a PM e ficou com medo. Por volta das 17h de ontem, um comboio da Polícia Militar subiu pela rua Argentina, via de acesso para a Vila Baiana no Guarujá. A simples presença das viaturas foi como um gatilho para um morador com mochila nas costas, que havia acabado de voltar do trabalho. Ele sentou no banco em frente a uma parada de ônibus por alguns minutos, ao lado da esposa. E disse estar com medo de voltar para a própria casa.
Em outro caso, marcas de sangue ainda estavam na parede de uma das vielas da favela. Ali, havia ao menos dez perfurações de tiros nas paredes e uma cápsula de bala no chão. Eram vestígios da morte do vendedor ambulante Felipe Vieira Nunes. Ele foi torturado e assassinado por policiais da Rota após sair de casa para comprar cigarro, segundo o relato de parentes e vizinhos.
“Ouvimos tiros. Ele só gemia de dor e implorava por ajuda”, disse uma mulher não identificada. “Depois de uns cinco minutos, houve um tiro de novo. Aí, os policiais entraram na minha casa para tirar as balas que estavam no muro. Eles ficavam perguntando se a gente tinha visto ou ouvido alguma coisa”, completou.
Uma catadora de recicláveis de 51 anos contou que policiais militares invadiram a sua casa horas antes da morte de Felipe e ameaçaram matar os seus dois filhos. Ela disse ter procurado a Polícia Civil para registrar ocorrência, mas informou ter sido desaconselhada pelos investigadores, que teriam se comprometido a “advertir” os PMs. Eles iriam matar os meus filhos na minha frente. Nós estamos abrindo as portas para eles. Mas eles estão vindo para nos matar.
Uma catadora de recicláveis de 51 anos contou que policiais militares invadiram a sua casa horas antes da morte de Felipe e ameaçaram matar os seus dois filhos. Ela disse ter procurado a Polícia Civil para registrar ocorrência, mas informou ter sido desaconselhada pelos investigadores, que teriam se comprometido a “advertir” os PMs.
“Eles iriam matar os meus filhos na minha frente. Nós estamos abrindo as portas para eles. Mas eles estão vindo para nos matar”, disse.
Ainda, policiais militares mataram com tiros de fuzil e pistola um homem identificado como indigente durante uma perseguição no bairro Sítio Conceiçãozinha, no Guarujá.
Segundo boletim de ocorrência registrado pelos PMs, o morador de rua “carregava uma mochila nas costas e certo volume na cintura” e “passou a correr” ao perceber a chegada da viatura policial.
Três policiais desembarcaram do carro e perseguiram o suspeito dentro de uma mata até “um beco sem saída”. Um dos soldados disse ter ouvido um disparo de arma de fogo, que foi revidado pelos policiais. Foi um tiro de fuzil e dois de pistola .40. O suspeito morreu no local.
Ainda segundo o relato dos policiais, o suposto indigente portava um revólver calibre 38 e carregava dentro da mochila um tablete de maconha, um rádio de comunicação, uma faca e uma balança de precisão, que costuma ser usada para pesar drogas.
A Ouvidora da Polícia de São Paulo afirmou ter recebido relatos de uma atuação violenta no Guarujá por parte das forças de segurança e de ameaças constantes à população das comunidades da cidade.
“Diversos órgãos de Direitos Humanos e movimentos sociais vêm relatando uma série de possíveis violações de direitos na região, à margem da legalidade, com indicativos de execução, tortura e outros ilícitos nas ações policiais na região, por ocasião da referida operação. A morte violenta do soldado PM e dos civis são inaceitáveis. Nada, nem nenhuma assimetria se justifica quando se clama por justiça e segurança para todos”, disse, em nota, o ouvidor da Polícia, Cláudio Silva na última segunda-feira (31).
Douglas Belchior, integrante da União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora (Uneafro), afirmou, também na segunda, que relatos dos moradores da região apontaram a ocorrência de violações. “Eu tive acesso a fotografias de vítimas desta ação desta semana cujos corpos estão marcados com queimaduras de cigarro. Então há sim evidências de torturas”, contou.
A integrante da Rede de Proteção Contra o Genocídio, Marisa Fefferman está no Guarujá para um ato, na tarde desta quarta-feira (2), em repúdio às mortes cometidas pelas forças do estado e disse que o clima é de terror. Segundo ela, os policiais estão entrando nas casas e todo o território está se sentindo ameaçado.
“Eles [moradores] estão falando que é um clima de terror total, de tensão total, as pessoas estão morrendo de medo. As pessoas estão com muito medo de ir para o ato porque é pressão o tempo inteiro, escolas fechando, igrejas fechando, está uma tensão imensa. Estão em pleno terror, é isso que eles estão dizendo”, disse.
CELEBRAÇÃO DA CHACINA NAS REDES
Nas redes sociais, policiais militares celebraram e fizeram a contagem das mortes em postagens que foram criticadas por outros usuários por exaltarem violações de direitos humanos.
As publicações mostram cenas de agentes armados em operação no Guarujá e prints de conversas, por exemplo, nas do soldado Diogo Raniere Rodrigues Lima e do ex-PM e candidato derrotado a deputado estadual Luiz Paulo Madalhano Magalhães. Segundo a “Ponte Jornalismo”, o conteúdo também passou pelas contas do cabo Silvino Martins Santos.
“Aquele que provoca o mar não sabe a força da onda”, diz uma postagem nos stories do soldado Raniere. Outro post que circulou na web tinha, ao fundo, a canção “Rotomusic De Liquidificapum”, do Pato Fu, cuja letra diz que “Hoje as pessoas vão morrer. Hoje as pessoas vão matar. O espírito fatal e a psicose da morte estão no ar”.
Em outra postagem, o soldado Madalhano ironiza que a estamparia vai se tornar uma oportunidade para quem quer empreender no Guarujá, em referência a blusas com fotos de pessoas mortas em operações policiais que costumam ser usadas em protestos de parentes.
“Rota é igual Tele Sena. Resultados de hora em hora”, afirma outra postagem de Madalhano.
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o secretário de segurança do estado, Guilherme Derrite, anunciaram aumento do efetivo policial e uma nova unidade em Guarujá, no litoral de São Paulo, após a morte do PM da Rota Patrick Bastos Reis. Segundo o governador, as ações se fazem necessárias, pois “o tráfico ocupou a Baixada Santista”.
De acordo com Tarcísio, a Operação Escudo vai continuar na Baixada Santista por pelo menos 30 dias. Além disso, o governador ainda prometeu novas ações na região.
“Nós vamos levar para a Baixada Santista o aumento de efetivo, unidade da Polícia Militar. Nós devemos ter mais uma unidade da Polícia na Baixada para aumentar o efetivo e responder o anseio da Baixada”, disse Tarcísio.