Publicamos abaixo a análise do crítico Raphael Cubakowic sobre o longa “O Destino de um Homem”, de Sergei Bondarchuk, que abriu a 7ª Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo na última quinta-feira.
Raphael Cubakowic é montador e crítico de cinema. Responsável pela montagem de obras como “Hora Extra”, “Fragmentos de Uma Metrópole”, “Pontos de Vista” e “Toda Sombra Parece Viva”. Foi editor e produtor na Versátil Home Video por quatro anos, e desde 2018 ministra aulas sobre história, estética e teoria do cinema.
Filme comentado durante a 7ª Mostra Mosfilm de Cinema
RAPHAEL CUBAKOWIC*
“O Destino de um Homem”, de Sergei Bondarchuk, costuma ser posicionado de maneira a formar um tríptico junto a “Quando Voam as Cegonhas” (Kalatazov, 1957) e “Balada de um Soldado” (Chukhrai, 1959), como aqueles que melhor representariam o novo realismo soviético em todas as suas frentes, resumindo estética e discursivamente as tendências centrais dos filmes desse turbulento, liberal e controverso período chamado de “degelo”. Mais especificamente, essa escolha se dá pelos filmes materializarem, dentro da retratação da guerra, o novo humanismo corrente, aqui em sua variação soviética, em oposição ao que fora a representação do conflito e das cinebiografias que constituíram o grosso da rala e fortemente controlada produção do pós-guerra (1945 a 1952).
Após uma consolidada carreira como ator, iniciada ainda em 1948, Bondarchuk arrisca-se nas intempéries da direção, dividindo também sua atenção na função de ator, em sua estreia de 1959, tendo como elemento basilar de sua obra a resiliência ao sofrimento e a aproximação para com o sujeito humano como ponte de acesso e magnificação. Diferente dos outros dois filmes que formam o trio, através de movimentos de câmera controlados, molduras periféricas turvas para o flashback inicial e uma narração de um lirismo literário bem demarcado, o filme demonstra sua proximidade para com a gramática que o precedeu e na qual Bondarchuk foi formado como ator. Especialmente em termos do narodnost quando diminui o som da cena para deixar a narração clara, tanto quanto a imagem cristalina em sua compreensão. Tal opção fica ainda mais evidente no modo como configura e organiza a encenação em meio ao combate, apesar de ainda resguardar soluções um tanto grosseiras semelhante às vistas em “Balada de um Soldado” por Chukhrai (também em começo de carreira). Sendo assim, o elemento distintivo para com a geração anterior, para com o projeto da Segundo Floração Soviética, está na sensibilidade, foco e subjetividade do relato, portanto, no tratamento discursivo do tema, diferente dos outros dois filmes que tentaram romper de forma mais definitiva atacando também o processo de representação e produção plástica.
Seguindo por esse veio, em termos de ideinost, a cena no interior da decrépita igreja em ruínas, logo no primeiro terço da obra e na introdução da conjuntura como prisioneiro de guerra, é bastante sintomática. A camaradagem é o grande vínculo entre os homens, mas elementos particulares a colocam em cheque, uma unidade mítica se desmancha frente a realidade, assim como uma postura menos incisiva e brutalizante para com a religião. A morte do camarada cristão não passa batida, ao menos não pela câmera. A seguir, do lado de fora das paredes ornadas com os característicos ícones russos, o orgulho em ser membro do partido, um comunista, sucumbe frente à necessidade da manutenção da própria vida. Os mártires de outrora estão terminantemente fora de moda aos olhos de nosso protagonista. E se há um momento em que o direcionamento estético de Bondarchuk se faz valer, é na primeira cena de fuga em que planos oblíquos são seguidos de travelling, câmera subjetiva e depois um momento de proto-snorricam. É uma sequência exemplar do interesse pela subjetividade da experiência guiada por uma gramática normativa centrada e pouco prospectiva, mas nem por isso anacrônica ou limitada em termos de representação.
E se no primeiro momento há uma espécie de contestação humanizada do realismo soviético em função da guerra, a seguir, na cena em que Sokolov desafia a ameaça de morte bebendo, a alma russa e o partinost mostram não terem ido a lugar algum. Inclusive no excelente plano em que os camaradas pesam as porções de comida para garantir que tudo seja rigorosamente repartido de forma equivalente. Mas por mais que a felicidade e certo heroísmo extravasem sob a égide e após a vitória, ainda é preciso encontrar força para se viver num mundo arruinado (em múltiplas frentes). Esta é encontrada no sopro de esperança que Sokolov lança sob o olhar vacilante e inocente do pequeno Vanya no mais bonito e comovente abraço do cinema de Bondarchuk.
Portanto, já em sua estreia, fica claro porque Bondarchuk será alçado, com suas direções futuras, ao posto de mais límpido representante do realismo soviético “pós-degelo”. Certamente longe das aspirações da Terceira Floração Soviética (Tarkóvski, Shepitko, Paradjanov), ele representou uma produção estável e alinhada ao que se tinha por mais sólido do ideinost ao partinost também do período mais estável da produção soviética de estúdios.
A 7ª Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo acontece até o dia 13 de dezembro. Os filmes são disponibilizados gratuitamente no canal do CPC-UMES Filmes no Youtube.
Para ver a programação completa, acesse o site: www.cpcumesfilmes.org.br