“Lula já sabe perfeitamente que qualquer movimento para recuperação de espaço para o protagonismo do Estado exige mudar radicalmente o arcabouço fiscal e eliminar a obsessão do titular da Fazenda com o corte de gastos”
PAULO KLIASS*
Esta frase costuma ser atribuída à Rainha Maria Antonieta, que assim teria se manifestado no dia de sua coroação em 1774. Ela falava a respeito da dificuldade que o povo francês encontrava para comer pão. Ainda que não haja comprovação da veracidade histórica do ocorrido, o fato é que ela reflete muito bem o comportamento da elite da monarquia em relação a seus súditos. Um misto de desprezo, ignorância e preconceito.
Pois a anedota voltou às redes em razão de manifestações de autoridades políticas quanto à recente crise dos alimentos, envolvendo a elevação de preços de vários produtos e ameaças de desabastecimento em outros. Em primeiro lugar, é importante ressaltar a gravidade da conjuntura, marcada pela contribuição significativa dos preços de vários itens de origem agrícola para o aumento dos índices de preços. Junto com derivados de petróleo e tarifas de serviços públicos, o custo da alimentação (dentro e fora de casa) representa parcela expressiva do aumento do custo de vida.
O problema é que a estratégia do governo se mantinha restrita ao manuseio da taxa oficial de juros para combater a inflação. Ao incorporar um diagnóstico equivocado a respeito da natureza da alta dos preços, a equipe de Haddad seguia papagueando os “especialistas” do financismo, para quem tudo se resumia à chamada inflação de demanda. Assim, se o ponto era a existência de um excesso de recursos em mãos de quem gostaria de comprar, a solução seria retirar dinheiro da esfera do consumo e assim reduzir os preços.
ALTA DOS ALIMENTOS: GOVERNO PRECISA ATUAR E NÃO ASSISTIR
Ocorre que o arrocho da política monetária não afeta os preços que têm seu comportamento definido pela oferta e não pela demanda. O governo tem aumentado de forma significativa a taxa oficial de juros e nem por isso os índices de preços têm apresentado o recuo esperado. Essa receita não funciona para os itens associados a preços de commodities ou daquilo que os manuais de macroeconomia chamam de “preços administrados”, como tarifa de água, luz ou transportes.
Assim, quando Lula convocou seus ministros a lhe oferecerem soluções para enfrentar a alta dos alimentos, o que se imaginava é que as propostas viriam à mesa para serem debatidas e implementadas. Afinal, as pesquisas de opinião estão apresentando uma queda importante na popularidade do governo e do próprio Presidente da República. E um dos principais fatores apresentados para o fenômeno é a alta do custo de vida. Mas, ao que tudo indica, tem prevalecido a interpretação de que não haveria muito a fazer, a não ser deixar o tempo correr e aguardar a livre ação das forças de mercado agir para buscar um novo ponto de equilíbrio. Uma loucura!
O Ministro Chefe da Casa Civil se envolveu no assunto, mas acabou metendo os pés pelas mãos. Em um primeiro momento deixou a entender que o governo poderia até promover uma intervenção no setor, fazendo relembrar a época do tabelamento de preços. A fala de Rui Costa foi a seguinte:
(…) “para buscar conjunto de intervenções que sinalizem para o barateamento dos alimentos” (…) [GN]
Em seguida, ele tentou desfazer o mal-entendido e negou qualquer inciativa de tal característica e foi também desmentido por outros colegas de Esplanada. Mas logo na sequência, o Ministro se embaralhou de novo ao tentar explicar o caso de um dos itens que mais chamava a atenção nos índices: o preço da laranja. E desta vez não teve jeito. Ao invés de buscar alguma explicação que não remetesse à impossibilidade de o governo fazer alguma coisa, ele incorporou o espírito de Maria Antonieta. Terrível!
(…) “O preço internacional está tão caro quanto aqui. O que se pode fazer? Mudar a fruta que a gente vai consumir. Em vez da laranja, outra fruta.” (…) [GN]
Ora, a população brasileira sabe muito bem o que fazer em situações como esta. Não precisaria o principal titular da Esplanada explicar que, caso o preço da laranja ficasse realmente proibitivo, o povo teria de buscar algum produto para substituir no consumo diário. Esse procedimento, que os manuais de microeconomia adoram explicar, foi incorporado pelo povo em sua História de luta pela sobrevivência, com todos os períodos de inflação elevada e hiperinflação. Ou ainda com as crises associadas aos inúmeros planos de estabilização. Ou ainda com os períodos duros de desemprego aberto e redução significativa da renda pessoal e familiar.
RETOMAR A POLÍTICA DE ESTOQUES REGULADORES
O problema deste tipo de comunicação reside na soberba, na postura elitista de quem imagina que pode oferecer todas as alternativas para o povo ignorante. Se não tem pão, que comam brioche. Se não consegue comprar laranja, que procurem outra fruta! Pois, então, daqui a pouco ele deverá recomendar chicória para passar no coador em lugar do pó de café, também cada vez mais caro.
Existem diversas soluções e diferentes estratégias para se enfrentar a questão dos preços no mercado de alimentos. A mais importante de todas talvez seja a política de estoques reguladores. O Brasil tem um histórico relevante na matéria, por meio da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), dentre outros instrumentos. É uma forma inteligente de o governo atuar sobre crises de desabastecimento ou de preços. As políticas de natureza neoliberal dos últimos anos e a pressão para implementar austeridade fiscal contribuíram para desmantelar essa política pública tão estratégica. Assim, passados mais de 2 anos do terceiro mandato de Lula, os níveis dos estoques reguladores dos principais produtos agrícolas estão mais do que insuficientes.
No caso específico da laranja, se houvesse mesmo interesse político e estratégico em assegurar o abastecimento interno, o caminho passaria por algum tipo de mecanismo criado pelo setor público. O Brasil é o maior produtor mundial do produto, respondendo por 34% da oferta mundial. Como o consumo interno é relativamente baixo e pouco expressivo diante da produção total, poderia ser adotada, por exemplo, uma estratégia de assegurar o direcionamento ao mercado interno de uma fração da produção da fruta a preços compatíveis com os custos internos. Tal procedimento poderia implicar o destino de recursos orçamentárias para nivelar os ganhos dos produtores.
AUSTERIDADE DE HADDAD IMOBILIZA O GOVERNO
No entanto, a preocupação maior do Ministério da Fazenda é com o rigor da austeridade fiscal. Assim, todo e qualquer gasto público que não seja a despesa com pagamento de juros da dívida pública é objeto de corte, limite e contingenciamento. Esta é a principal razão para que não sejam colocadas em prática medidas para reduzir os preços dos alimentos. O próprio Fernando Haddad deixou isto muito claro, exatamente na sequência dos pedidos de Lula para que o governo apresente medidas para solucionar a crise no setor. Sua declaração foi aseguinte:
(…) “Não há espaço fiscal para isso e não há necessidade de espaço fiscal, porque o que vai resolver esse problema não é esse tipo de medida. É nós melhorarmos a concorrência, melhorarmos ambiente de negócio, melhorarmos as nossas compras externas. Continuarmos perseguindo esses objetivos ” (…) [GN]
Ora, Lula já sabe perfeitamente que qualquer movimento para recuperação de espaço para o protagonismo do Estado exige mudar radicalmente o arcabouço fiscal e eliminar a obsessão do titular da Fazenda com o corte de gastos. Faltam menos de 21 meses para o primeiro turno das próximas eleições presidenciais. É urgente uma mudança de rumos na política econômica, inclusive na esfera dos estoques reguladores. Caso contrário, os dirigentes do governo seguirão sugerindo que o povo passe a consumir brioches.
*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal