… Perguntando-lhe em seguida o vigário de Bagé,
a que hora ordenava o Te Deum,
cumpre conservar a nobre resposta que lhe foi dada.
“Reverendo! Precedeu a esse triunfo derramamento de sangue brasileiro.
Não conto como troféus desgraças de concidadãos meus.
Guerreio dissidentes, mas sinto as suas desditas,
e choro pelas vítimas como um pai por seus filhos.
Vá, reverendo, vá! e em lugar de Te Deum,
celebre missa de defuntos, que eu, com o meu estado maior,
e a tropa que na sua igreja couber,
irei amanhã ouvir-lha, por alma dos nossos irmãos iludidos,
que pereceram no combate.”
(Joaquim Pinto de Campos, Vida do Grande Cidadão Brazileiro
Luiz Alves de Lima e Silva, Barão, Conde, Marquez, Duque de Caxias, 1878, p. 100)
Indagado sobre a ordem de Bolsonaro para que o Ministério da Defesa organizasse “comemorações” alusivas ao golpe de 1º de abril de 1964, o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), respondeu: “Sou filho de exilado político”.
O deputado poderia ter acrescentado que ele mesmo nasceu no exílio, mais precisamente, no Chile, onde seu pai, César Maia, se refugiara, devido à perseguição da ditadura que, então, existia no Brasil.
Mas Rodrigo Maia preferiu ficar na frase que acima transcrevemos.
Realmente, é suficiente.
Mais tarde, no mesmo dia, o imbecil que Bolsonaro colocou no Ministério das Relações Exteriores – aquele que acredita que os EUA, e, especialmente, Trump, são os representantes de Deus na Terra – disse, na Comissão de Relações Exteriores da Câmara:
“Vossa Excelência me perguntava se eu considero 1964 um golpe. Eu não considero um golpe. Considero que foi um movimento necessário para que o Brasil não se tornasse uma ditadura. Não tenho a menor dúvida disso. Essa é minha leitura da história.”
Entre 1964 e 1977, foram torturadas, no Brasil, 1.843 pessoas (esse número está nos volumes que constituem o Projeto Brasil: Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo; mas ele diz respeito aos presos que chegaram a ser ouvidos em auditorias militares; ao todo, houve 6.016 denúncias de tortura a presos políticos durante a ditadura).
Nada menos que 6.592 militares foram punidos e excluídos das Forças Armadas por motivos políticos, vários por se recusar a participar das torturas (v. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Direito à Memória e à Verdade, p. 30).
Também entre 1964 e 1977, 434 pessoas foram assassinadas (210 desaparecidas) pelo aparato de repressão (v. Comissão da Verdade, Relação de perfis de mortos e desaparecidos políticos, pp.15-22).
Cerca de 50 mil brasileiros foram presos, somente nos primeiros meses após o golpe (v. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, op. cit.).
Entre 1964 e 1970, foram efetuadas 536 intervenções sindicais: 483 em sindicatos, 49 em federações e 4 em confederações (v. Grupo de Trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores, às Trabalhadoras e ao Movimento Sindical, A luta dos trabalhadores por verdade, justiça e reparação, p. 6).
O número dos que foram cassados e/ou tiveram os seus direitos políticos suspensos atingiu 4.862 pessoas (v. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, op. cit.).
Houve 10 mil brasileiros exilados durante a ditadura (idem).
Houve 7.367 pessoas acusadas judicialmente por motivos políticos e 10.034 responderam a inquéritos – o que, muitas vezes, como no caso do presidente Juscelino Kubitschek, era pior do que ser acusado judicialmente (idem).
Houve quatro condenações à pena de morte, depois comutadas para prisão perpétua (idem).
Houve 130 brasileiros que foram banidos do país (idem).
245 estudantes foram expulsos da universidade e proibidos de entrar em outra instituição de ensino (idem).
A censura prévia aos jornais, TV e atividades artísticas abafou o país por 10 anos.
E nem temos um número preciso das demissões, que atingiram milhares, sem outra justificativa que a de pensar diferente dos que mantinham o poder.
Somente cientistas com renome internacional, a ditadura demitiu ou aposentou compulsoriamente nada menos que 471 cientistas brasileiros (v., na revista da Fundação Oswaldo Cruz, Projeto identifica cientistas perseguidos pela ditadura militar).
DESASTRE
Portanto, segundo o ministro de Bolsonaro, instalaram uma ditadura para evitar uma ditadura, eliminaram as eleições para garantir as eleições, rasgaram a Constituição para defender a Constituição, e, naturalmente, se submeteram aos norte-americanos para manter a independência do Brasil. Sucintamente, acabaram com a democracia para garantir a democracia (v. o nosso trabalho “Figuras e figurinhas em 1964: antes e depois do golpe contra o Brasil”).
Mas, por que Bolsonaro e seus asseclas, como Araújo, querem negar que existiu uma ditadura – e uma ditadura sangrenta – no Brasil?
Porque, na verdade, esse é o sonho deles. Como disse o próprio Bolsonaro em uma conhecida entrevista: “Pau-de-arara funciona. Eu sou favorável à tortura. Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, quando, um dia, nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando com o FHC, não deixar ir pra fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente” (v. Vitória de Bolsonaro cria grave ameaça à democracia no Brasil).
É preciso ser muito pervertido para ter isso como sonho, ou até como fanfarronice – mas é fato.
Naturalmente, se ele pudesse instalar uma ditadura das milícias no Brasil, instalaria.
Pois, restam agora poucas dúvidas, Bolsonaro é um representante político das milícias – não dos militares. Até a sua moradia era do outro lado da rua daquela de um assassino do Escritório do Crime.
Isso, evidentemente, nada tem a ver com os militares.
Tem a ver com as milícias.
Até agora, Bolsonaro conseguiu perpetrar o maior desastre que um presidente do Brasil já conseguiu em três meses de governo.
Nem Collor atingiu tais culminâncias – ou funduras – da estupidez, da subserviência e da queda no abismo da impopularidade, em tão pouco tempo.
A votação na Câmara, terça-feira, em que o governo foi derrotado por 448 votos a 3, e, depois, por 453 votos a 6 (o PSL preferiu seguir a maioria, de tão isolado que estava, inclusive o filho de Bolsonaro), mostra o tamanho desse desastre em termos parlamentares.
A viagem aos EUA redundou em um espetáculo de submissão tão indecoroso – desde a visita à CIA até o compromisso de comprar carne de porco dos EUA, passando pela Base de Alcântara, ambos em troca de nada – que acabou repudiado pela própria mídia que, normalmente, é um sustentáculo das posições pró-norte-americanas.
Talvez não seja necessário listar mais que isso. O resto está em nosso noticiário, desde o hospício instalado no Ministério da Educação até a ministra da goiabeira, que agora resolveu promover um livro chamado “Feminismo: Perversão e Subversão”, escrito por aquela moça que incentivava alunos a dedurarem professores.
A tese é que o feminismo incentiva as mulheres a devorar os machos, tal como fazem certas fêmeas de insetos após o acasalamento… A diferença entre os seres humanos e os insetos não é razoavelmente perceptível para quem tem vocação de inseto.
Paremos por aqui, mas, antes, há uma questão, ainda, a registrar.
Segundo alguns órgãos coirmãos, os militares não gostaram da ordem de Bolsonaro para que o Ministério da Defesa faça “comemorações” do golpe que instalou a ditadura, em 1964.
O próprio comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, orientou os comandantes de sua Arma, já no começo do mês, que “qualquer orientação sobre como tratar o fato deve partir do escalão superior, neste caso, o Ministério da Defesa. (…) Não haverá manifestação do Alto-Comando ou de quem quer que seja na Força” (v. Marcelo Godoy, Bolsonaro, Pujol, o Exército e a lembrança de 1964, OESP, 20/03/2019).
Não temos confirmação do desagrado dos militares, mas há toda lógica nele.
Os militares são gente como os demais brasileiros. Não são uma multidão de Bolsonaros.
Pelo contrário, sujeitos como Bolsonaro, que se notabilizaram, como militares, pela indisciplina, não são muito queridos nas fileiras castrenses, para dizer o mínimo.
Menos ainda quando são malucos que planejam detonar bombas “de baixa potência” em instalações militares (v. Terrorismo de baixa potência).
E muito menos ainda gostam os militares que Bolsonaro procure usá-los contra os demais brasileiros, inclusive contra o Congresso e a Justiça (v. Bolsonaro quer comemorar golpe de 1964 para intimidar Legislativo e Judiciário).
Usar os militares contra o Brasil – em prol dos interesses pessoais de Bolsonaro, de seu ódio ao povo, de sua subserviência doentia aos inimigos do país – é tudo que os militares não querem.
C.L.
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