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Entendimento da Corte foi que as mudanças alteraram política de controle de armas de fogo sem respaldo do Congresso Nacional. Crime organizado se favoreceu da liberação
O Supremo Tribunal Federal invalidou, por unanimidade, os efeitos de trechos de quatro decretos editados por Jair Bolsonaro (PL) que afrouxavam as regras para aquisição e porte de armas de fogo.
O julgamento se deu no formato de plenário virtual em que os ministros manifestam seus votos por meio de uma plataforma eletrônica na internet, sem a necessidade de uma sessão presencial ou por videoconferência e terminou nesta sexta-feira (30).
Com as alterações dos dispositivos, o Comando do Exército deixa de controlar a aquisição e registro de alguns armamentos e equipamentos que permitem o porte simultâneo de até duas armas de fogo pela população.
O entendimento foi de que as mudanças implementadas pelo Poder Executivo alteraram a política pública de controle de armas de fogo sem o devido respaldo do Congresso Nacional.
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REGRAS INCOMPATÍVEIS
A suspensão já havia sido determinada em 2021 pela ministra Rosa Weber, relatora do processo, mas dois pedidos de vista atrasaram o julgamento do colegiado. O tema, porém, ainda precisava ser analisado pelos demais ministros para servir como parâmetro para análise futuras de normas relacionadas ao tema.
A magistrada afirmou que havia necessidade da análise imediata dos pedidos cautelares face à iminência da entrada em vigor dos decretos, que ocorre 60 dias após sua publicação.
Os dispositivos também diminuíam a fiscalização do Exército sobre a circulação de armas, medida que chegou a ser criticada pelo Congresso. O argumento era de que as modificações deveriam ser feitas por lei, e não por decisão individual do chefe do Executivo.
Weber justificou que as regras são incompatíveis com o sistema de controle e fiscalização de armas instituído pelo Estatuto do Desarmamento. Além disso, ultrapassam os limites do poder regulamentar atribuído ao presidente da República pela Constituição. “Excederam aos limites constitucionais”.
“Tenho por suficientemente evidenciado, pelo menos em juízo preliminar, fundado em cognição sumária inerente aos pronunciamentos judiciais cautelares, que os decretos, ao reformularem a Política Nacional de Armas, excederam aos limites constitucionais inerentes à atividade regulamentar do chefe do Poder Executivo”, analisou.
Ademais, os regulamentos executivos atuam para dar aplicabilidade às leis, devendo-lhes observância ao seu espaço restrito de delegação, considerou. “Em uma ordem jurídica, fundada nos pilares da democracia constitucional e do Estado de Direito, o respeito ao espaço legislativo é requisito de validade constitucional.”
A ministra também revogou diversos mecanismos que facilitavam a compra de armas e munições dos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores). Por exemplo, autorização para prática de tiro recreativo em clubes destinados a isso sem que haja registro prévio dos praticantes.
Também houve a redução da idade mínima para praticar tiro, de 18 para 14 anos. Foi suspensa ainda a autorização para escolas de tiros comparem munição em quantidade ilimitada.
Rosa Weber manteve a necessidade de credenciamento na Polícia Federal do psicólogo que comprova aptidão psicológica dos CACs para aquisição de armas. A exigência havia sido suspensa pelo decreto de Bolsonaro.
MINISTRO BOLSONARISTA DIVERGE
Apesar de ter acompanhado o voto da relatora, o ministro bolsonarista Kássio Nunes Marques defendeu a ampliação do acesso às armas. Ao votar, Nunes Marques fez comparações sobre o combate à criminalidade nos Estados Unidos e no Brasil.
Ele alegou que, nos Estados Unidos e no Brasil, “o criminoso busca adquirir arma de fogo longe do controle do Estado, por meios escusos, sem qualquer controle ou supervisão”, o que é óbvio.
“É evidente que o cidadão interessado em adquirir arma de fogo e registrá-la junto aos órgãos competentes sabe que, ao fazê-lo, concederá ao Estado maior supervisão sobre a arma que adquiriu. Daí por que, por óbvio, o uso que dela fizer se prenderá basicamente à legítima defesa”, afirmou.
O ministro vê nos EUA “o berço dos valores democráticos do Ocidente”. Para ele, o país norte-americano – pilar do imperialismo mundial – tem “relação íntima de identidade e matriz constitucional” com o Brasil.
Ao defender o direito da população de se armar, o bolsonarista lembrou do contexto histórico do surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU) e das cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos, ao final da Segunda Guerra Mundial.
Segundo ele, a Alemanha, nos tempos de Hitler, “aos poucos foi restringindo a possibilidade de os cidadãos alemães possuírem armas de fogo”. Assim, “em 1938, Hitler assinou uma nova Lei de Controle de Armas que beneficiou os membros do Partido Nazista, negando a posse de armas de fogo aos eternos ‘inimigos do Estado’.”
Vale ressaltar que a legislação antiarmas na Alemanha foi instituída em 1919, pela República de Weimar, após o fim da Primeira Guerra Mundial, quando a cidade de mesmo nome recebeu uma assembleia constituinte naquele ano para a elaboração de uma nova Carta Constitucional para o país.
Hitler ascendeu ao poder somente 14 anos depois, em 1933, sendo que só em 1938 é que o regime sanguinário iniciou o controle de armas. Assim, foi instituída a exigência de permissão policial para quem quisesse comprar revólver, e proibição do porte pelo povo judeu.
Para o ministro de Bolsonaro, “privar o cidadão de possuir arma de fogo representa afastamento da promessa feita pela Constituição de proteger seu plexo de direitos constitucionais (ou seja, os direitos à vida, à saúde e à liberdade, entre tantos outros)”.
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ARMAMENTOS FORTALECERAM CRIMINOSOS
Ao defender o armamento do cidadão tal qual o direito à vida, Nunes Marques finge esquecer os malefícios da política belicista do “mito”. Ao escancarar a legislação pró-armas e enfraquecer o Estatuto do Desarmamento”, Bolsonaro fez o número de CACs aumentar de forma alarmante pelos quatro cantos do país.
Numa ponta, o arsenal de armas e munição espalhado pelo Brasil está funcionando para armar o crime organizado; na outra, para aumentar o número de homicídios e feminicídios, acidentes com armas de fogo e outras violências domésticas.
Só no Distrito Federal, o registro de crimes cometidos por CACs aumentou 745% nos últimos quatro anos. E chama atenção o salto nas ocorrências enquadradas pela lei Maria da Penha, com aumento de 1.100%.
Ao longo do mandato de Bolsonaro, a quantidade de CACs subiu de 117.467, em 2018, para 813.188, em 2022, segundo dados obtidos pelo portal G1 via Lei de Acesso à Informação (LAI) junto ao Exército.
O policial federal Roberto Uchoa, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que a facilitação para obter arma de fogo, registrada nos últimos anos, põe em risco a sociedade.
“As armas de fogo elas fragilizam. Fragilizam crianças com a possibilidade de acidentes domésticos, fragilizam mulheres que já podem ser vítimas de violência doméstica e a arma passa a ser mais um instrumento de opressão dessa mulher”, diz.
Nesta quinta-feira (29), uma operação deflagrada pela Polícia Federal em todo o Brasil cumpriu 33 prisões e apreendeu 11 armas de fogo de colecionadores, atiradores e caçadores (CACs), bem como possuidores de armas de fogo em geral. A atuação dos agentes ocorreu em 15 estados e no Distrito Federal e integra a segunda fase da Operação Day After.
A operação é uma espécie de pente fino entre os CACs envolvidos em crimes graves em diversos âmbitos do código penal, como homicídio, estupro, roubo, extorsão, tráfico de drogas e atos terroristas.
Segundo a PF, desde o fim do prazo de recadastramento de armas de fogo, no último dia 3 de maio, o órgão já fez a prisão de 147 CACs, proprietários de armas de fogo ou vigilantes em situação irregular com o equipamento.
Durante uma audiência na Comissão de Segurança Pública do Senado em 9 de maio último, o ministro da Justiça, Flávio Dino, disse que há uma “intersecção” entre criminosos e CACs. Segundo ele, existem colecionadores que colaboram com o crime organizado.
“Criminosos viraram CACs, e CACs também se associaram à prática criminosa. E por isso tem ocorrido as prisões. Ou seja, infelizmente, nós temos uma zona de intersecção. É claro que temos a imensa maioria dos CACs que não comete crimes, mas nós temos alguns CACs que estão a serviço de organizações criminosas”, disse Flávio Dino, ministro da Justiça, durante audiência na Comissão de Segurança Pública do Senado em 9 de maio.
JOSI SOUSA