Para debater se a China é uma real alternativa ao dólar, se há uma nova configuração dos termos monetários internacionais, questão trazida à tona pelos sinais de esgotamento da ordem unipolar sob os EUA, o pesquisador e escritor Elias Jabbour conversou, nesse Meia Noite em Pequim, da TV Grabois, com o pesquisador do Instituto Tricontinental e editor do ‘Notícias da China’, Marco Fernandes, que está em Xangai.
Marco, sublinha Jabbour, é um dos intelectuais brasileiros que têm se debruçado sobre essa questão, que virou uma onda depois do início do conflito na Ucrânia: o que está acontecendo no mundo em relação ao dólar, se a China seria uma alternativa a essa ordem financeira internacional, e se os esquemas regionais são uma alternativa a essa influência americana e europeia.
Sobre isso, Marco lembrou a famosa frase de Lenin de que há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem, que diz muito sobre a nossa realidade. “Precisamos localizar qual é o grande problema”, assinala o pesquisador do Instituto Tricontinental, e conclui: “o dólar é o grande problema pra humanidade, para o Sul global principalmente”.
Primeiro – ele acrescenta – porque está em dólar a maior parte das reservas globais, reservas de moeda estrangeira que os países têm nos seus bancos centrais, apesar de que já caiu. Segundo o próprio Federal Reserve, em 1999 estavam em dólar 71% das reservas mundiais; no ano passado, 59,5%.
“Muitos especialistas falam que esta é a verdadeira arma de destruição em massa – claro as bombas atômicas voltaram e estão no debate – mas o dólar nas ultimas décadas cumpriu esse papel”, assinala Marco.
“Os Estados Unidos têm o poder de arrasar países como tem feito, por exemplo, restringindo acesso aos dólares, ameaçando bancos internacionais”, ele aponta. “Isso vem acontecendo há décadas em Cuba e nos últimos anos na Venezuela por imposição dos EUA”.
Marco cita o presidente Alberto Fernández, que recentemente equiparou “a um genocídio” o bloqueio de acesso a alimentos que os EUA vêm conseguindo fazer através da restrição de acesso ao dólar em Cuba. Na Venezuela, uma pesquisa apontou que nos últimos dez anos 40 mil pessoas morreram devido às sanções, “então é esse poder que eles têm”.
“Então, a primeira questão é essa restrição ao acesso aos dólares, o segundo jeito são as imposições do FMI”, assinala Marco. “Um país que perde as reservas – caso da Argentina agora – ele não consegue fazer mais comércio nem rolar suas dívidas ou pagar seus compromissos, é uma desgraça”.
Isso os EUA conseguiram fazer nas últimas décadas através do FMI: “chega num país que está quebrado e diz ‘eu te dou 20 bilhões mas aí você privatiza a sua economia, as suas estatais, destrói o sistema de educação e de saúde’, que são as políticas de austeridade”.
“Outra arma é a exclusão do SWIFT [sistema internacional de pagamentos]”, acrescenta o pesquisador de Xangai, “isso até tem jeito de burlar, mas dificulta”. “A China já criou um sistema próprio, que é o CIPS, que ainda é um sistema pequeno, mas que está feito”.
“E por último – e aí é bandidagem pura – é o roubo dos ativos, que eles chamam de congelamento dos ativos, fizeram isso com a Venezuela, fizeram isso com o Irã, fizeram com o Afeganistão e agora, com o início da guerra, fizeram com a Rússia, um dos maiores roubos da história do capitalismo, mais de 200 bi de dólares”.
Agora – sublinha Marco -, “foi um tiro no pé porque isso que fizeram com a Rússia ligou uma alerta geral de ‘quem é o próximo’”, um alerta global para a necessidade de criar alternativas, e que não vai ser fácil do ponto de vista do yuan porque a moeda chinesa ainda é usada entre 2-3% das reservas globais e transações internacionais.
ALTERNATIVAS, MUITAS ALTERNATIVAS
Mas a China tem criado alternativas, muitas alternativas, sublinha Marco. “Basicamente você precisa garantir o que eles chamam de liquidez, os países têm que ter dinheiro no Banco Central e agora a gente vai ter outras alternativas que não o dólar”.
“A outra questão são os financiamentos, agora há esses mecanismos multilaterais, uma espécie de vaquinha que os países fazem para ter um fundo de reserva, então se alguém precisa desse fundo não vai precisar chamar o FMI, não vai precisar chamar os EUA”.
“O BRICS fez isso a partir de 2014, criaram um fundo que se chama Fundo de Reserva Contingente”. Que é um fundo que tem mais ou menos 500 bi de reais, o grande protagonista é a China, que colocou mais ou menos 40% desses recursos, Brasil, Índia e Rússia botaram mais ou menos 18% desses recursos cada.
“Faz duas semanas a China anunciou um novo fundo com países da região, Malásia, Indonésia, Singapura, Hong Kong e Chile. E o interessante é que a China fez isso com o BIS, o BC dos Bancos Centrais, que fica na Suíça”. E aí você vai para as regiões e existem outros mecanismos.
CHINA ULTRAPASSOU O FMI COMO CREDOR LÍQUIDO DO MUNDO
“A china recentemente ultrapassou o FMI como o principal credor líquido do mundo e fica uma pergunta, se essa não seria uma superação da ordem de Bretton Woods a China se transformar nessa potência financeira internacional?”, indaga Jabbour.
A segunda questão apresentada por Jabbour é se fatos como o grande acordo que a China fechou com o Irã – se fala de 250 a 400 bi de dólares – em que a China receberia 25 anos de fornecimento de petróleo e em troca vai investir em trens de alta velocidade, metrô de Teerã, transferência de tecnologia, ao final das contas não acabam “cancelando aquela teoria do Prebisch, que era correta, da deteriorização dos termos de troca”?
Observando não ser o caso do ‘Brasil de Bolsonaro, que quer vender commodities’, Jabbour pergunta a Marco “se um país tiver um projeto nacional, uma visão estratégica de como se colocar no mundo e esse país procurar se relacionar com a China, existe a possibilidade desse tipo de relação cancelar a tendência da deteriorização dos termos de troca?”. Ou tal relação da China “com a África, com a América Latina” seria “uma política neoimperialista?”
Marco concorda com Jabbour sobre “esse papel da China como grande financiador”, de “grande emprestador sobretudo de infraestrutura no Sul global”. O CDB, que é o banco de desenvolvimento da China, tem mais ativos hoje “do que se você juntar Banco Mundial, Banco de desenvolvimento Europeu e outros bancos regionais”.
“Tem outra coisa que a China vem fazendo meio na miúda que é um outro mecanismo que certamente vai crescer com o tempo, exchange swap, troca de moeda em português”, ressalta Marco. “A China chega para o Brasil e diz taí meus yuans, guarda aí no banco Central, me passa os seus reais eu guardo no meu banco central e quando a gente precisar fazer comércio, investimento, a gente usa isso e deixa o dólar pra lá. Hoje a China tem acordo com mais de 40 países, correspondentes em reais a mais de 2,5 trilhões”.
Como exemplo, ele cita o caso do Paquistão, que por duas vezes nos últimos anos entrou em estado de complicação, faltou liquidez e ao invés de ir para o FMI fez o troca-troca de moeda com a China e resolveu o problema. “Isso é uma arma que a China está aos pouquinhos construindo justamente, e isso possibilita a China e outros países a usar esse mecanismo para não precisar mais usar o dólar.
Outro exemplo – ele destaca – aconteceu há algumas semanas, a maior empresa de cimento da Índia importou carvão da Rússia e pagou em yuan. “Isso é uma coisa que há um ano atrás seria impensável e que agora está acontecendo porque estão se expandindo essas iniciativas de substituição do dólar”.
ABERTA A PROJETOS AUTÔNOMOS
“A segunda questão sobre os termos de troca eu posso dar um exemplo da América Latina pra gente pensar. O Brasil hoje, o jeito que relações comerciais entre Brasil e China são feitos, não é o melhor para o Brasil. A pauta exportadora do Brasil pra China é 89% soja, minério de ferro, petróleo e carne. Isso a longo prazo para o Brasil…. A gente está importando carro, maquinário e está mandando soja”.
Para ter uma ideia do que pode ser feito: “a Argentina fechou uma série de acordos com a China super favoráveis”. Conseguiu financiamento de 8 bi de dólares para uma usina nuclear que vai contar com transferência de tecnologia. “Agora, a Argentina apresentou a proposição, aí é questão política, é um debate de alto nível”.
“A China então tende na sua opinião a se adaptar a projetos nacionais autônomos e isso é um diferencial absurdo com formas anteriores de relação entre centro e periferia”, destaca Jabbour.
“Na África, tem exemplos como a Etiópia, o Egito. Ou o Irã, superfavoráveis em questão de investimento em infraestrutura e transferência de tecnologia, então a China já deu muitos exemplos que ela está disposta mas a China não vai propor isso para o Brasil”, assinala Marco.
“O Brasil é que tem que propor para a China e a gente sabe que desse governo nefasto não vem nada, mas a gente sabe também que o presidente Lula está cercado de pessoas que estão pensando nisso e que já perceberam que isso pode ser proposto à China”.
MACAQUEAÇÃO
Quanto a certa parte da esquerda que insiste em macaquear a propaganda dos EUA de que a China é ‘imperialista’ – de acordo com Jabbour, “conceitualmente um estupro” – Marco registra que a China tem dado exemplos o suficiente “de que não só está disposta mas tem como estratégia enfraquecer a unipolaridade e hegemonia absoluta dos EUA no sistema mundial. Isso a China vem falando e fazendo faz 20 anos”. Mas agora há três semanas o órgão teórico do Partido publicou um discurso do Xi, de fevereiro, em que fala “com todas as letras”, que o Ocidente, as potências ocidentais, são “responsáveis por exportar o caos e a destruição para o mundo inteiro”.
“É difícil entender como é que pode ser atribuída à China a categoria de imperialismo, que pressupõe violência, invasão, guerra, agressões contra os países do Sul global que os EUA perpetuam faz décadas e que a China justamente está construindo mecanismos para que os países do Sul global, e ela inclusive, possam se defender”.
BRASIL PRECISA FAZER SUA PARTE
Marco exemplifica com o problema de que o Brasil produz soja demais “e o jeito que a gente produz soja, o jeito que o agronegócio brasileiro está organizado é destruidor da natureza e é destruidor dos camponeses e dos trabalhadores rurais. Mas aí é um problema que o Brasil precisa resolver”.
“A China precisa comprar soja. É óbvio que a gente tem que fazer a crítica ao agronegócio, que é uma estrutura que está destruindo o Brasil e o povo brasileiro. Agora, a China não vai esperar a gente mudar o sistema agrário brasileiro para resolver a alimentação de 1,4 bilhão de pessoas”.
Da mesma forma que a gente não vai parar de comprar celular. A gente compra celular da China e esse celular chinês é feito por um trabalhador chinês que a soja vai alimentar o porco que ele vai comer. Então no fundo é evidente se a gente for discutir o modo de produção de alimentos no mundo hoje, ele está destruindo o planeta e a humanidade. A China – aponta – não vai esperar isso se resolver para resolver o seu problema interno de segurança alimentar.
“CERCO DO CENTRO GLOBAL PELO SUL GLOBAL”
Instado por Jabbour, o pesquisador em Xangai revela que na China há um debate cada vez mais forte sobre a construção de alternativas à hegemonia dos EUA. Um think tank ligado ao ministério das Relações Exteriores basicamente disse que a China precisa desistir de qualquer reconciliação com os EUA, podem haver recuos táticos dos EUA – a elevação das tarifas alfandegárias foi um tiro no pé que prejudicou a economia dos EUA e não a da China -, mas é preciso ficar claro que não vai haver reconciliação.
Outra ideia muito interessante cada vez mais discutida é inspirada em uma imagem do maoismo, de que a Revolução Chinesa foi camponesa “e a estratégia foi o cerco da cidade pelo campo”. A imagem que está começando a se popularizar é que – ao invés do cerco da cidade pelo campo – “é o cerco do centro global pela periferia, o cerco do Norte global pelo Sul global”.
“Justamente porque há uma compreensão cada vez maior de que daqui pra frente a China vai precisar mergulhar ainda mais profundamente nesse relação com o Sul global, porque não tem mais como se reconciliar com os interesses do império das potências globais, e essa é a linha do presidente Xi Jinping. E, com tudo que tem acontecido na Ucrânia, essa vai ser cada vez mais a pauta do governo e dos esforços de todos os setores da sociedade”.
Elias Jabbour é professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ.
Marco Fernandes é pesquisador do Instituto Tricontinental e editor do ‘Notícias da China’