No Meia Noite em Pequim, da TV Grabois, o pesquisador e escritor Elias Jabbour, debate uma questão que tem estado muito em voga no noticiário recentemente: a crise pegou a China?
Um tema altamente polêmico, como ele observa, registrando eventos que se sobrepõem, como a grave crise hídrica, a política de Covid Zero, a quebra do setor imobiliário e alguns episódios de instituições bancárias – o chamado shadow banking, sistema financeiro de sombra -, que entraram em um esquema de pirâmide.
Ele explica que o sistema financeiro sombra surge na China por conta dos bancos estatais privilegiarem os empreendimentos das empresas estatais, em detrimento do setor privado. Ainda está em processo de regulação, atua muito no campo mas levou milhares de famílias a perder muito dinheiro.
Então quando junta esse combo todo, a impressão que dá é que a China vai quebrar, como tanta gente fala e até virou meme.
Diante disso, acrescenta Jabbour, a pergunta que temos que nos fazer o tempo inteiro é “o que está acontecendo de fato com a China?” – e tentar buscar respostas para isso.
Primeiro, sublinha o pesquisador, “eu acho que a China está passando por uma grande e profunda transição interna, que passa pela mudança qualitativa do regime de propriedade do país. Ou seja, todo esse setor privado que já não estava tendo serventia ao projeto nacional chinês, está passando por um processo em que o controle estatal está se elevando”.
O que está havendo nesse aspecto é que o privado e o estatal vão se combinando e daí surgem novas formas históricas de propriedade, com hegemonia da propriedade pública dos meios de produção na China.
É um processo que está acontecendo no setor imobiliário. Trata-se do maior processo de estatização do mundo, com milhares de pessoas envolvidas, que tem interesses provinciais envolvidos, é a quebra de um setor que tem dívidas da casa dos 300 bilhões de dólares.
Em qualquer país capitalista isso afundaria a economia como um todo, porque o sistema financeiro levaria o resto da economia junto. Mas isso não aconteceu na China porque a maior parte da dívida do setor imobiliário chinês é com o setor público do sistema financeiro.
Também ao lado disso tem a crise hídrica, uma crise de falta de água. É um país com 1,4 bi de habitantes, com dois rios gigantes, com uma poluição imensa desses rios por conta de 40 anos de crescimento baseado no carvão. Isso levou a problemas sérios de tratamento de água na China, de poluição da água, é mais uma crise a ser administrada.
E também tem a crise – não sei se dá para falar em crise, pondera Jabbour – que é essa tentativa enlouquecida dos americanos de bloquear completamente a China do sistema internacional dos semicondutores.
Para ele, as contradições hoje vividas pela China têm raiz na década dos 90 quando ela dá um cavalo de pau em várias políticas, com a formação dos conglomerados empresariais estatais e deixa para trás todo o modelo empresarial soviético e o modelo de seguridade social que lhe era anexo.
Surge o setor privado na China, fortíssimo, inclusive na construção civil. Surge o setor privado nos serviços, as Big Techs, e isso gera uma massa de bilionários que está aí, inclusive sendo alvo do Xi Jinping. “Diferenciações sociais e territoriais cada vez maiores e evidentemente isso chega num ponto em que explode e eu acho que a China já chegou a esse ponto”.
Para Jabbour, a China está enfrentando essas crises “com muita sabedorias; isso não é passar pano para os chineses, é apenas entender a realidade”. Nenhum país do mundo capitalista – ele acrescenta – seria capaz de enfrentar simultaneamente essas crises e suas múltiplas contradições.
Existe – aponta o pesquisador -uma crise do processo de desenvolvimento, que pode gerar mais desenvolvimento. Tanto que a China vai crescer 4% este ano, que é quase o dobro do que os EUA vai crescer, apesar da política de Covid Zero.
Basicamente esse combo é um processo histórico doloroso que dá um ar mais “dramático” por conta do surgimento e da explosão de crises de múltiplas contradições. “E as pessoas me perguntam onde fica o socialismo nisso”.
“É óbvio que essa é uma reflexão interessante, e eu acredito particularmente que o socialismo ele tem que ser observado da seguinte maneira: acho que tem o reino da necessidade, que é o reino em que nós vivemos hoje, inclusive os chineses, que é o reino da era capitalista, e existe o reino da liberdade”.
Entre um reino e outro – enfatiza Jabbour – existe um longo processo histórico, durante o qual a humanidade vai lendo e tendo conhecimento das formas com que as coisas estão funcionando e é chamada a sair de uma contradição de forma consciente e a se colocar em outra contradição de forma consciente.
Ou seja – ele destaca -, o processo de desenvolvimento “não é um processo de salto de um ponto de equilíbrio para outro ponto de equilíbrio”, como diriam os economistas ortodoxos e heterodoxos, “e sim um salto de um ponto de desequilíbrio para outro”.
A grande questão é como a inteligência humana tem sido chamada e sido capaz de saltar de um ponto de desequilíbrio a outro de forma consciente – “e o único lugar em que isso acontece é a China”.
“E o nome que eu daria esse processo – ou seja se eu fosse achar um nome pra descrever a forma que a China está enfrentando isso, a forma com que ela sai de uma contradição à outra de forma consequente, eu chamaria isso de socialismo”, ressalta Jabbour.
Segundo o pesquisador, o socialismo uma forma histórica, ele não tem uma forma histórica definitiva até porque ele “nunca apareceu em sua forma completa, da norma idealizada na cabeça de muita gente”.
“O que nós vemos é um conceito que vai criando força, vai criando alma, até atingir certa maturidade e eu acredito que o socialismo chinês ainda está como nós dissemos no nosso livro ‘China, o Socialismo do Século 21’, o socialismo chinês ainda é um socialismo embrionário, que emerge limitado por contradições de um capitalismo que ainda é dominante no mundo inteiro”, conclui Jabbour.
Elias Jabbour, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ).