“Eu não vou esperar f… minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar”, disse ele na famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020
O inquérito da Polícia Federal que investigava a tentativa de aparelhamento do órgão, por parte de Bolsonaro, denunciada pelo ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, concluiu, depois de dois anos e quatro mudanças em sua direção, além de alterações em quase todas as equipes de investigação da corporação, que não houve nenhuma irregularidade.
Bolsonaro apareceu no vídeo de uma reunião de ministros de 22 de abril de 2020 falando explicitamente sobre sua intenção de aparelhar a PF. Nesta reunião, que tornou-se pública por decisão da Justiça, há falas de Bolsonaro claramente neste sentido.
Assista ao vídeo em que Bolsonaro afirma que vai intervir na PF
“Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro e oficialmente não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f… minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar. Se não puder trocar, troca o chefe dele. Se não puder trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira”, disse ele.
MENSAGENS DE DIGITAIS TAMBÉM MOSTRARAM AS INTENÇÕES DE BOLSONARO
Além disso foram disponibilizadas várias mensagens de WhatsApp trocadas entre ele e o seu então Ministro da Justiça, Sérgio Moro, onde ele pressiona abertamente pela mudança na direção da Polícia Federal e na Superintendência do órgão no Rio de Janeiro. Era principalmente no Rio que a PF fazia investigações sobre os ilícitos de seu filho “zero um”.
Depois ele tentou dizer que sua fala na reunião se referia a mudanças na segurança da Presidência no Rio de Janeiro. Mas, era mentira. Até transcrições da Advocacia Geral da União (AGU) confirmaram que Bolsonaro havia falado da Polícia Federal (veja aqui).
Reportagens naquela semana, da TV Globo, também o desmentiram mostrando que ele acabara de fazer mudanças na direção da Segurança Presidencial no Rio sem nenhum problema. Portanto, a emenda saiu pior que o soneto. Em sua fala na reunião ele diz textualmente que tentou e não conseguiu fazer as mudanças.
Em 11 de maio do ano passado o delegado Maurício Valeixo confirmou que Jair Bolsonaro tinha a intenção de afastá-lo da direção da Polícia Federal mesmo sem ter nenhum motivo técnico para fazê-lo. Valeixo informou que Bolsonaro queria alguém com “afinidade” na Direção-Geral da PF.
Segundo o delegado, o presidente não apresentou motivos técnicos para sua demissão, mas deixou claro que não o queria no cargo. Valeixo disse também que o presidente telefonou para ele na véspera de sua demissão e informou que a exoneração dele do cargo seria publicada “a pedido”. Valeixo informou que “em duas oportunidades, uma presencialmente, outra pelo telefone, o presidente da República teria dito ao depoente que gostaria de nomear ao cargo de Diretor-Geral alguém que tivesse “maior afinidade”.
CORPORAÇÃO RESISTIU O QUANTO PODE
A corporação evidentemente resistiu o quanto pode às investidas de Bolsonaro. Inclusive o STF chegou a impedir que ele nomeasse para a direção geral da PF o ex-segurança de sua campanha e amigo de seus filhos, Alexandre Ramagem, que acabou indo para a Abin (Agência Brasileira de Informação). Em outras vezes a Corte foi decisiva para defender investigações que Bolsonaro queria interromper ou distorcer. Além das do Rio, ele estava preocupado com duas investigações em particular que estavam sendo feitas pela PF, mas que tramitam no STF;
Uma delas apurava a indústria de fake news contra o Supremo e a outra a organização de atos em favor de um golpe de estado e do fechamento do Congresso e do tribunal. Só não foram paradas porque Moraes não deixou. O ministro Alexandre de Moraes é o relator de ambas. Moraes agiu correta e preventivamente e determinou que o comando da PF, qualquer que seja ele, mantenha em suas respectivas funções os delegados que já trabalham nas duas frentes de investigação.
Bolsonaro não ficou só na tentativa de aparelhar a PF. Ele abriu uma feroz perseguição a todos os órgão públicos de investigação e controle de corrupção. O primeiro foi o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), que havia descoberto que seu filho fazia movimentações financeiras altamente suspeitas. Depois o Ministério Público e a polícia descobriam que ele tinha montado um esquema de lavagem de dinheiro em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio.
Pelo esquema detectado pelo Coaf, foram movimentados na conta do ex-sargento da PM, Fabrício Queiroz, o faz-tudo da família, cerca de R$ 7 milhões entre 2016 e 2018. O MP descobriu também que o esquema de lavagem usava funcionários fantasmas que devolviam parte do salário e também a milícia do Rio das Pedras e Muzema. A mãe e a ex-mulher do chefe desta milícia e assassino profissional, Adriano da Nóbrega, Raimunda Magalhães e Danielle da Nóbrega, respectivamente, eram funcionárias fantasmas do gabinete de Flávio Bolsonaro e, segundo o MP, devolveu R$ 400 mil ao gabinete.
COAF E RECEITA TAMBÉM FORAM PERSEGUIDOS PELO GOVERNO
Pois bem, o Coaf, que elaborou um relatório sobre essas movimentações ilícitas do gabinete de Flávio Bolsonaro, foi o primeiro órgão de investigação a ser “cancelado” por Bolsonaro. Ele não sossegou enquanto não anulou a atuação do órgão. Acabou alocando-o no terceiro escalão do Banco Central, sem nenhuma condição de continuar agindo.
Depois foi a vez da Receita Federal. O órgão havia detectado, também com a ajuda do Coaf, irregularidades nas declarações de renda e de bens de Flávio Bolsonaro. Ele estava lavando dinheiro também através da compra e venda de imóveis e de sua loja de fachada, que vendia chocolate em um shopping de luxo na Zona Oeste do Rio.
Iniciou-se a perseguição aos servidores que detectaram os desvios. Usaram até a Abin (Agência de Inteligência do governo) para acusar os servidores da Receita de terem cometido irregularidades. Teriam, segundo a família Bolsonaro, invadido ilegalmente a privacidade dos bens do “zero um” e de sua mulher. Exigiram a exoneração dos funcionários.
“A Receita Federal do Brasil, por intermédio de sua corregedoria e de sua inteligência, em especial, por intermédio de seus escritórios Escor07 e Espei07, vem, rotineiramente, alimentando informalmente os demais órgãos de controle, com dados sensíveis e sigilosos, para, no momento oportuno, investigar os alvos escolhidos e devassados previamente”, afirmou Flávio na petição apresentada pelos advogados.
Apesar de toda a pressão, a investigação do Fisco concluiu pela improcedência das três teses do filho de Bolsonaro. Os investigadores relembraram que a acusação dos auditores-fiscais suspeitos de enriquecimento ilícito não tinha resultado em nenhuma prova de ato ilegal pela corregedoria, apontou que os dados do relatório de inteligência do Coaf não tinha nenhuma informação estranha àquele órgão, e disse que “todo e qualquer acesso aos sistemas e bancos de dados fiscais possuem registros de quem efetuou e de quando foi realizado”, não existindo, portanto, o alegado “manto da invisibilidade”.
DERRUBADA DO CORREGEDOR
Começou então uma violenta pressão por parte de Flávio Bolsonaro e do Planalto para fazer o novo corregedor e contornar a situação desfavorável. Onde já se viu desobedecer o chefe desse jeito. Houve, porém, resistência do secretário-especial da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, que indicou o auditor Guilherme Bibiani para o cargo. O posto ficou vago desde julho, quando encerrou o mandato de três anos do antigo corregedor, José Pereira de Barros Neto.
Em 7 de dezembro, o governo exonerou o secretário especial da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, que vinha há meses sofrendo pressão de Flávio Bolsonaro que pressionava Tostes Neto a nomear uma pessoa de sua preferência na corregedoria do órgão. No dia 1º de fevereiro deste ano, o ministro Paulo Guedes (Economia) nomeou como novo corregedor da Receita Federal o auditor-fiscal João José Tafner, simpatizante da família Bolsonaro. Depois de tudo isso, Bolsonaro enche a boca para dizer que não há corrupção em seu governo. O que não há é quem possa denunciar.
Portanto, a decisão de arquivamento deste inquérito, recheado de provas das intenções de Bolsonaro, é uma mostra de que, apesar de todas as resistências do corpo de integrantes da Polícia Federal, do STF e de outras instituições, ele conseguiu obstruir algumas investigações. O relatório da Polícia Federal enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou que não há elementos de crime na conduta do presidente Jair Bolsonaro no caso em que ele foi acusado de interferência na autonomia da instituição policial.
“Concluímos que, dentro dos limites da investigação traçados pelos Exmos. Ministros Relatores, no âmbito da esfera penal, não há nos autos elementos indiciários mínimos de existência de materialidade delitiva imputada ao Senhor Presidente da República Jair Messias Bolsonaro assim como também ao Senhor Sérgio Fernando Moro”, afirma o documento. O relator da investigação é o ministro Alexandre de Moraes, que poderá encaminhar as conclusões da Polícia Federal para parecer da PGR.
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