Dona Marinalva tem 62 anos e mora em Guaianases, na zona leste da cidade de São Paulo, com uma filha desempregada e uma neta. Apesar de um problema no joelho esquerdo, bastante doloroso, no momento ela é a única fonte de renda da família, trabalhando como faxineira em várias casas, todas muito longe de onde reside. Em geral, é obrigada a tomar um ônibus, que a leva até uma estação de Metrô, e, depois do Metrô, outro ônibus, até o trabalho de cada dia.
“Com o dinheiro que eu não gasto na passagem, eu compro ‘mistura’ para a comida”, diz Dona Marinalva, nordestina de Parambu, no interior do Ceará, mas que mora há mais de 30 anos em São Paulo.
Dona Marinalva é uma das pessoas, com mais de 60 anos, que foram despojadas do seu direito de viajar gratuitamente nos ônibus, Metrô e trens urbanos de São Paulo, por ação conjunta do governador João Doria e do prefeito da capital, Bruno Covas.
São milhares, milhares e milhares de pessoas na mesma situação, pois há, segundo a Fundação Seade, 594 mil e 97 pessoas que têm entre 60 e 64 anos no município de São Paulo (no Estado, constata o IBGE, são 1 milhão e 500 mil habitantes nessa faixa de idade).
Dona Marinalva não é, evidentemente, uma exceção, do ponto de vista social, ao tomar, entre a ida e a volta à casa, quatro ônibus, intercalados por duas viagens de Metrô, para ganhar a vida – ou, melhor, para sobreviver.
Assim é a vida de milhares de pessoas, depois dos 60 anos, até os 64 anos. São essas – e suas famílias – as pessoas prejudicadas pela medida tentada pelo governo de São Paulo e pela Prefeitura da capital, na antevéspera do Natal, sem discussão, ou, como alguns disseram, “na calada da noite”.
Entretanto, segundo o secretário de Projetos do governo Doria, Mauro Ricardo, pessoas como Dona Marinalva são “jovens” – e por isso devem pagar a passagem nos ônibus, trens e Metrô.
Em entrevista à rádio CBN, no último dia 6, disse esse secretário do governo de São Paulo:
“Não há qualquer necessidade de assistência social a essa faixa etária, de 60 a 64 anos, que hoje são jovens. Hoje, a expectativa de vida está em torno de quase 77 anos de idade. Não há qualquer necessidade de dar benefícios a essa faixa etária, de 60 a 64 anos, e retirando do restante da população, inclusive da população mais carente, para atender essa faixa etária de 60 a 64 anos.”
O aumento da expectativa de vida é, portanto, de acordo com esse indivíduo, uma maldição para quem vive mais. Quase nem vale a pena mencionar que a expectativa de vida mencionada pelo secretário é muito mais baixa nos bairros pobres.
Mesmo que não fosse: por que a maior extensão da vida deve significar que quem é idoso (“pessoas com idade igual ou superior a 60 anos”, segundo o artigo 1º do Estatuto do Idoso) deixa de ser idoso?
Por que viver mais, deve significar viver mais miseravelmente do que antes?
Além da completa desumanidade – ignorando as agruras de ser pobre, residir na zona leste e trabalhar, por exemplo, nos Jardins, com mais de 60 anos de idade, tomando vários ônibus, Metrô e/ou trens por dia – o representante do governo paulista tem o cinismo de tentar jogar uma faixa da população contra outra (“retirando do restante da população”).
Ou seja, são os idosos até 64 anos que estão “retirando” dos carentes mais jovens – e não o governo e a Prefeitura que estão cassando um direito dos carentes que têm acima de 60 anos.
É um cinismo que faz fronteira, de tão despudorado, com o delírio.
Mas não vamos confundir falta de vergonha com doença mental, porque é um cinismo que expõe um grau, talvez inaudito, de maldade em relação aos idosos – isto é, aos idosos pobres, pois, certamente, não é a mãe do secretário que tem de se submeter a esse regime de transportes, para sobreviver.
O que isso tem de revoltante, deixamos aos leitores sentir – e concluir.
Até porque é evidente que, se não fosse pelo Estatuto do Idoso, que é lei federal (Lei nº 10.741/2003), a gratuidade nos transportes teria sido retirada também daqueles que têm 65 anos ou mais.
Não é outra coisa, senão uma confissão nesse sentido, a justificativa do governo e da Prefeitura de São Paulo de que a cassação do direito daqueles que têm de 60 a 64 anos, foi tomada para se enquadrar “no Estatuto do Idoso”.
Desde quando o Estatuto do Idoso foi estabelecido para cassar direitos dos idosos?
Pelo contrário, o Estatuto do Idoso estabelece direitos mínimos. Jamais se pretendeu, até agora, que ele existisse para reduzir direitos dos idosos a esse mínimo.
Aliás, suposto defensor do Estatuto do Idoso, o secretário do governo de São Paulo esqueceu que esta lei federal define “idoso” como aquele cidadão com 60 anos ou mais.
Na hora de cassar direitos, idosos são transformados em “jovens” com tremenda, e irresponsável, facilidade.
É a essa covardia que se pode chegar, quando a injustiça – e, pode-se dizer, nesse caso, a injustiça sádica – preside determinações governamentais.
MISÉRIA E PANDEMIA
Pior, ainda, a decisão de cassar a gratuidade foi tomada durante a pandemia de Covid-19.
Não bastam os sofrimentos da população, em especial dos que têm mais de 60 anos, com a praga que já matou 200 mil brasileiros (quase 80% deles, com mais de 60 anos).
Nesse momento, trágico e mortal, exatamente nesse momento, o governo de São Paulo e a Prefeitura da capital tomam uma medida que significa uma diminuição na renda dos idosos – hoje, com a destruição econômica, uma das principais, muitas vezes a principal, fonte para a sobrevivência das famílias.
“Passamos por uma crise sem precedentes na qual os Aposentados, Pensionistas e Idosos são cada vez mais a principal pessoa que compõem a renda familiar. Retirar direitos de um idoso é um ATO DESUMANO, É PROMOVER A MARGINALIZAÇÃO DA PESSOA IDOSA. Com essa canetada, o idoso não conseguirá o direito básico de ir e vir, seja para ir trabalhar ou ir ao médico. Onde está a justiça social?”, aponta a Federação das Associações de Aposentados, Pensionistas e Idosos do Estado de São Paulo (FAPESP).
O caso do sr. Pedro Crisóstomo, com 63 anos, é, nesse sentido, típico. Morador do Jardim Carombé, na zona norte da cidade de São Paulo, ele é aposentado e contribui, com parte de seus proventos, para os quatro filhos e suas famílias.
Com a tarifa atual dos transportes em São Paulo, R$ 4,40, Crisóstomo teria que desembolsar R$ 8,80, cada vez que precisar sair do seu bairro (o uso do Bilhete Único, com direito a quatro embarques, somente é válido por três horas).
Para quem tem uma aposentadoria equivalente ao salário mínimo, e ainda assim ajuda aos filhos, o fim da gratuidade é um aumento da aflição, em direção ao desespero – e totalmente desnecessário, pois é evidente que as “justificativas” do governo de São Paulo e da Prefeitura são inconsistentes, a começar pela “adaptação” ao Estatuto do Idoso, que já mencionamos acima.
A FAPESP denuncia, também, o modo sorrateiro, embuçado, como foi realizada essa cassação de direitos dos idosos: “Na calada deste final de ano, às vésperas do natal, em meio de uma pandemia, o Governo do Estado de São Paulo junto a Prefeitura da capital TOMAM UMA ATITUDE TOTALMENTE UNILATERAL QUE VISA TOTAL EXCLUSÃO DAS PESSOAS IDOSAS” (v., também, HP 23/12/2020, Mudança da lei retira os idosos entre 60 e 65 anos da gratuidade nos transportes em São Paulo).
Por que isso foi feito dessa forma?
Porque os autores da medida sabiam que ela era ilegítima, sabiam que era um ataque à população, sobretudo aos que têm de 60 a 64 anos, mas também a suas famílias – e isso são milhões de pessoas na cidade de São Paulo (e também no Estado, já que os ônibus intermunicipais também fazem parte desse embrulho de crueldades).
CONTRA A LEI
A gratuidade nos transportes para aqueles que têm de 60 a 64 anos está garantida, em São Paulo, pelas Leis estaduais nº 15.187/2013 (Metrô, trens da CPTM e ônibus da EMTU) e nº 15.179/2013 (ônibus intermunicipais em geral).
No município de São Paulo, a gratuidade nos ônibus urbanos foi estabelecida pela Lei municipal nº 15.912/2013.
Todas essas leis foram aprovadas e sancionadas após às manifestações de 2013, contra os preços extorsivos nos transportes de passageiros.
Agora, em meio à pandemia, que é um obstáculo à mobilização – sobretudo dos idosos – o que o governador João Dória fez foi, simplesmente, emitir um decreto (Decreto Estadual nº 60.595), passando por cima de duas leis estaduais, aprovadas pela Assembleia Legislativa.
Na justificativa para esse decreto que, inconstitucionalmente, anulava duas leis, o governo argumentou (?) que estava apenas adaptando a legislação estadual à legislação federal – isto é, ao Estatuto do Idoso – que obriga a gratuidade a partir dos 65 anos.
Como escreveu o juiz Manoel Fonseca Pires, ao suspender o decreto de Doria, mesmo que isso fosse verdade – e não é, pois o Estatuto do Idoso não limita direitos, ao contrário, estabelece direitos mínimos -, não seria atribuição do governador essa “adaptação”, mas da Assembleia Legislativa (v. HP 08/01/2021, Justiça de SP derruba decreto de Doria e mantém transporte gratuito para idosos acima de 60 anos).
Aliás, vale a pena reproduzir um trecho da sentença do juiz:
“Não pode o Poder Executivo utilizar-se de atribuição afeta ao Poder Legislativo sob pena de afrontar o princípio da tripartição dos poderes, previsto no artigo 2º da Constituição Federal. Outrossim, não há falar em respeito ao artigo 39 do Estatuto do Idoso, o qual prevê gratuidade aos maiores de 65 anos, como medida para revogar o benefício previsto em Lei Estadual, uma vez que tal atribuição de adequar à legislação federal, como dito, é matéria afeta ao Poder Legislativo Estadual.”
No caso da lei municipal que garante a gratuidade nos ônibus urbanos para os que têm de 60 a 64 anos, recorreu-se ao famoso “jabuti” – ou seja, no meio de um projeto que nada tinha a ver com a gratuidade, ou o direito dos idosos, enxertou-se a cassação desse direito dos idosos.
Nas palavras da Federação dos Aposentados (FAPESP), foi usado “um substitutivo de um Projeto de Lei Municipal (PL 89/2020) colocado em 22/12/20, aprovado e sancionado na calada da noite, que dispõe sobre a criação de subprefeituras no município. O que isso tem a ver com a gratuidade dos idosos? Onde está a lógica? Diante de tudo que foi exposto, ONDE ESTÁ O DIÁLOGO E RESPEITO COM OS MAIS AFETADOS?”.
No dia seguinte à aprovação desse “jabuti”, desse contrabando que cassava um direito dos idosos que existia desde 2013, o governador João Doria e o prefeito Bruno Covas emitiram um comunicado conjunto, pelo qual, a partir de 1º de janeiro, acabaria a gratuidade nos transportes para quem tem de 60 a 64 anos.
Posteriormente, o início da cassação foi adiado para 1º de fevereiro.
EMPATIA, RESPEITO E JUSTIÇA
O decreto de Doria foi suspenso pela Justiça (v. HP 08/01/2021, Justiça de SP derruba decreto de Doria e mantém transporte gratuito para idosos acima de 60 anos).
Mas não a decisão municipal, implementada através do “jabuti” colocado dentro de um projeto que tratava de mudanças na estrutura de fiscalização das subprefeituras, sancionado pelo prefeito Bruno Covas no mesmo dia – a antevéspera do Natal – em que ele e Doria emitiram o comunicado conjunto de cassação do direito de gratuidade para os idosos até 64 anos.
Sobre isso, a suposta argumentação de que o objetivo da cassação seria diminuir o subsídio que a Prefeitura paga às empresas de ônibus é, simplesmente, falsa.
Como observou Rafael Calábria, coordenador de Mobilidade do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), “a remuneração dos novos contratos de ônibus já não paga mais as empresas por passageiro, então não importa para o governo se o passageiro é gratuito ou não” (v. HP 23/12/2020, Mudança da lei retira os idosos entre 60 e 65 anos da gratuidade nos transportes em São Paulo).
Portanto, a medida nada tem a ver com redução de subsídio. Seu efeito seria o de aumentar a arrecadação das empresas de ônibus – à custa de arrancar parte da renda de idosos pobres, de 60 a 64 anos.
Idosos como Dona Marinalva e o sr. Pedro Crisóstomo.
Daí, o chamado da Federação das Associações de Aposentados, Pensionistas e Idosos do Estado de São Paulo (FAPESP):
“Vamos lutar para que este direito seja mantido (…) PEDIMOS EMPATIA, RESPEITO E JUSTIÇA por aqueles que ajudaram e ajudam a construir esse país. Retirar direitos instituídos e conquistados há anos é um desrespeito com todos os idosos do Estado de São Paulo!
O PASSE LIVRE É DE TODOS OS IDOSOS!”
CARLOS LOPES
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