O relatório da Comissão Temporária Externa do Senado, aprovado na terça-feira (16), considerou que as mortes de Bruno Pereira e Dom Philips ocorreram por negligência do Estado. Segundo o texto, o Estado brasileiro não tem tomado as medidas necessárias para a proteção dos indígenas e da manutenção da política indigenista.
“O Estado tem negligenciado o seu especial dever de proteção”, escreve o senador Nelsinho Trad (PSD-MS), presidente da comissão e que assina o relatório final.
“Mesmo que se possa discutir a legitimidade dos interesses de não-indígenas sobre áreas não-homologadas, como defende a atual gestão da Funai,não há sombra de dúvida de que a presença de invasores nas terras já homologadas, como a do Vale do Javari, é um emaranhado de crimes contra os indígenas, contra a União e contra os interesses nacionais”, continuou.
No documento, o relator defende o emprego das Forças Armadas de forma emergencial para garantia da lei e da ordem na região do Vale do Javari e na Terra Indígena Ianomâmi, onde há invasão crescente de garimpeiros, com registros recorrentes de ações violentas, como mortes, estupros de mulheres e crianças, por garimpeiros invasores.
Outra sugestão é uma alteração na Constituição, com alteração da Lei Complementar 97, de 1999, permitindo que as forças militares atuem para defender os direitos indígenas.
Os senadores também propuseram uma alteração no Estatuto do Desarmamento, para conceder o porte de arma de fogo aos servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) em atividades de fiscalização, e na Lei de Crimes Ambientais, a fim de agravar penas em delitos cometidos em terras indígenas.
Trad já via dito que o duplo homicídio chamou a atenção devido à “elevada violência contra os povos indígenas e contra agentes públicos e particulares que trabalham pela proteção dos povos originários”.
“As Forças Armadas dispõem de meios e capilaridade muito superiores aos dos órgãos de segurança pública na região amazônica, incluindo sofisticados sistemas de vigilância. Há décadas, os nossos militares acolhem, nas suas fileiras, indígenas, caboclos e ribeirinhos, o que ajuda a consolidar o sentimento de nacionalidade”, diz o relator. “Reforçar, na lei, a parceria atende aos valores da paz e da ordem”, completou.
NEGLIGÊNCIA
O relatório final destaca que a Floresta Amazônica está presente em oito países, o que justifica reforçar no Parlamento Amazônico (Parlamaz) “o diálogo franco sobre a união de governos e povos para proteger a Amazônia e promover o desenvolvimento da região com respeito ao meio ambiente e aos povos originários”.
Durante os trabalhos, os parlamentares e a equipe técnica da comissão constataram que a pobreza e a falta de assistência são fatores que agravam a situação de vulnerabilidade das comunidades indígenas, expondo-as à violência.
“O Estado tem negligenciado o seu especial dever de proteção […], não há sombra de dúvida de que a presença de invasores nas terras já homologadas, como a do Vale do Javari, é um emaranhado de crimes contra os indígenas, contra a União e contra os interesses nacionais”, aponta o relatório.
“Por isso”, defendem os senadores, “os indígenas necessitam de assistência social, políticas de saúde, educação e apoio às suas atividades produtivas, para que possam prosperar e diminuir sua vulnerabilidade social”.
FORTALECIMENTO DA FISCALIZAÇÃO
Os parlamentares defendem ações integradas entre as esferas governamentais e instâncias do Estado brasileiro para salvaguardar os interesses dos povos indígenas e seus territórios.
“Conforme constatado por esta comissão in loco, é preciso investir no fortalecimento de mecanismos integrados de comando e controle, que conectem esferas federal e estadual e, em especial, diferentes órgãos e Poderes (principalmente polícias, Ministério Público, defensorias, Funai, Ibama, ICMBio, Incra e Judiciário)”.
Bruno e Dom foram mortos a tiros, durante uma expedição em barco para a cidade de Atalaia do Norte, no Amazonas, no dia 5 de junho. Os dois desapareceram e depois descobriu-se que seus corpos foram queimados e enterrados por criminosos locais.
A comissão temporária foi criada em 20 de junho para, no prazo de 60 dias, investigar as causas do aumento da criminalidade e de atentados contra povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos na Região Norte e em outros estados, assim como fiscalizar as providências adotadas diante do crime que vitimou Bruno Araújo Pereira e Dom Phillips.
Após votação e aprovação na sessão final da comissão, o texto será encaminhado à Presidência do Senado e aos membros da comissão e, consequentemente, às autoridades competentes.
REPÚDIO A BOLSONARO
Após a leitura do relatório, os parlamentares aprovaram um voto de repúdio, a pedido do senador Fabiano Contarato (PT-ES), contra declarações do presidente da República, Jair Bolsonaro; do vice-presidente, Hamilton Mourão; e do presidente da Funai, Marcelo Xavier, sobre as mortes do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips.
Segundo o senador, os representantes do Executivo atribuíram, de forma inaceitável, a responsabilidade pelo crime às vítimas. Contarato pediu respeito e reverência à memória dos dois e disse que “três pessoas revestidas de autoridade pública não contiveram a própria torpeza e investiram contra quem não mais poderia se defender”.
Em entrevista ao canal de Leda Nagle, no youtube, sua apoiadora, Bolsonaro agrediu à memória de Dom Philips e o culpou pela própria morte. “Esse inglês, ele era malvisto na região. Porque ele fazia muita matéria contra garimpeiro, questão ambiental”, disse.
“Aquela região, região bastante isolada, muita gente não gostava dele. Ele tinha que ter mais que ter redobrado atenção consigo próprio. E resolveu fazer uma excursão”, completou o defensor do garimpo ilegal.
Por sua vez, o vice-presidente Hamilton Mourão justificou os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips como resultado de uma briga por embriaguês.
“Isso é um crime que aconteceu num momento quase que de uma emboscada. Um assunto que vinha se arrastando, vamos dizer. Na minha avaliação, deve ter ocorrido no domingo. Domingo, sábado, essa turma bebe, se embriaga, mesma coisa que acontece aqui na periferia das grandes cidades”, disse Mourão.
“Aqui em Brasília, a gente sabe, né? Todo final de semana tem gente que é morta a facada, tiro, das maneiras mais covardes, normalmente fruto de quê? Da bebida, né? Então, a mesma coisa deve ter acontecido lá”, justificou o vice.
Já Marcelo Xavier, presidente da Funai, criticou às vítimas por não terem pedido autorização ao órgão para entrar no Vale do Javari.
“Muito complicado quando duas pessoas resolvem entrar na área indígena sem nenhuma comunicação formal aos órgãos de segurança, nem mesmo à Funai, que exerce sua atribuição dentro dessa área indígena”.