O discurso de Bolsonaro, na abertura da Assembleia Geral da ONU, na terça-feira (22/09), merece uma antiga imagem, hoje em desuso por ser um desrespeito a seres humanos acometidos de deficiência ou doença mental: o discurso de Bolsonaro foi o de um sujeito babando na gravata.
Mas Bolsonaro não é deficiente nem doente mental – exceto em um sentido amplo, que incluiria, também, Pinochet, Hitler e outros criminosos.
O que faz com que seu discurso pareça o de um elemento que está babando na gravata é, precisamente, o cinismo extremo, o mais total descompromisso com a verdade, o mais completo desrespeito aos brasileiros (e, é forçoso acrescentar, também aos demais seres humanos), a indecência pornográfica de atribuir aos outros a sua própria devastação da sociedade e da natureza do Brasil.
Alguns trechos:
Temos, disse ele, “a melhor legislação ambiental do planeta”.
Exatamente a legislação que Bolsonaro tem desrespeitado – e desmontado todos os instrumentos de fiscalização que poderiam fazer cumpri-la, desde o Ministério do Meio Ambiente, entregue a um delinquente inclusive ambiental, até o Ibama, proibido de atuar de acordo com a lei, até o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que teve o presidente, um dos mais conceituados cientistas do Brasil, demitido, por detectar o aumento das queimadas, até o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
“Os focos criminosos”, disse Bolsonaro na ONU, “são combatidos com rigor e determinação. Mantenho minha política de tolerância zero com o crime ambiental”.
Isso é mentira. E mentira escandalosa. Tão escandalosa, que provoca um certo fastígio demonstrá-lo.
Aqui, apenas uma amostra do nosso noticiário de dois anos de governo Bolsonaro:
HP 16/08/2019, Amparados por Bolsonaro, desmatadores fazem o “Dia do fogo” no Pará
HP 21/08/2019, “Bolsonaro inflamou a vontade de desmatar”, critica pecuarista do Pará
HP 12/08/2020, “Tolerância zero” de Bolsonaro não é com o desmatamento. É com a fiscalização
HP 20/07/2019, Desmatamento: atitude de Bolsonaro é “pusilânime, covarde”, afirma diretor do Inpe
HP 02/08/2019, Diretor do Inpe é demitido por detectar desmatamento incentivado por Bolsonaro
HP 19/08/2019, Governadores repudiam desmatamento e criticam governo pelo fim do Fundo Amazônia
HP 22/08/2019, “Vivemos uma barbárie ambiental promovida por Bolsonaro”, afirma Marina
HP 03/12/2019, Incendiário toca fogo na floresta e acusa os bombeiros pelo crime
HP 19/12/2019, Cientistas rebatem Bolsonaro e mostram que queimadas na Amazônia foram recordes
OBSCENA PSICOPATIA
Entretanto, diz Bolsonaro, agora na ONU, a culpa das queimadas é dos índios e dos caboclos, isto é, do povo brasileiro:
“A floresta é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente, nos mesmos lugares, no entorno leste da Floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas.”
Ou seja, a floresta só incendeia quando os índios e os caboclos – certamente munidos de pacotes e pacotes de caixas de fósforos – queimam a floresta.
Nem o fato de que não se está falando mais apenas do fogo na Floresta Amazônica, mas também no Pantanal, no Cerrado – e, segundo o Programa Queimadas, do Inpe, até na Caatinga – faz com que Bolsonaro deixe de babar na gravata com esse mentirol.
Bolsonaro sabe que jogar a culpa do incêndio sobre os índios e os caboclos é algo que beira o monstruoso. Por isso, tem outro responsável – e outra versão – também despejada na terça-feira, na ONU.
Segundo essa outra versão, o culpado é Deus, ou seja, a natureza:
“As grandes queimadas são consequências inevitáveis da alta temperatura local, somada ao acúmulo de massa orgânica em decomposição.”
Bolsonaro é mais psicopata do que imbecil. Por isso, confunde – ou procura confundir – “queimadas” em geral, focos de fogo aqui e ali, que realmente podem ser espontâneos, com a queimada geral que ele e seus sequazes promoveram, não somente com incêndios criminosos (v. HP 16/08/2019, Amparados por Bolsonaro, desmatadores fazem o “Dia do fogo” no Pará; HP 21/08/2019, “Bolsonaro inflamou a vontade de desmatar”, critica pecuarista do Pará; e HP 12/08/2020, “Tolerância zero” de Bolsonaro não é com o desmatamento. É com a fiscalização), mas também com o desmonte da fiscalização e do combate aos focos de incêndio.
É óbvio que essa sanha destruidora sobre a nossa natureza causou um choque no mundo. Isso nada tem a ver com a cobiça de monopólios privados, seus cartéis e suas potências imperialistas sobre a Amazônia.
A prova é que o próprio Bolsonaro anunciou a abertura das reservas indígenas para as mineradoras norte-americanas.
Pois é esse mesmo renegado da Pátria que, na terça-feira, disse na ONU:
“A Amazônia brasileira é sabidamente riquíssima. Isso explica o apoio de instituições internacionais a essa campanha escorada em interesses escusos que se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de prejudicar o governo e o próprio Brasil.”
Ao fundamentar a indicação do próprio filho, Eduardo – também conhecido, segundo o vice-presidente Hamilton Mourão, como “Dudu Bananinha” – para embaixador em Washington, Bolsonaro disse que “o garoto é muito amigo da família Trump, e pode ajudar bastante a atrair parceiros americanos para a exploração de minérios na Região Amazônica” (v. HP 28/08/2019, Ao invés de ação contra queimadas, Bolsonaro quer invadir terras indígenas).
Portanto, sua preocupação com as riquezas naturais da nossa Amazônia é apenas a de entregá-las aos asseclas de Trump.
Só esta e nada mais.
Somente esta e nenhuma outra.
Não há quem prejudique tanto o Brasil, no momento, não há quem seja tão aproveitador e impatriótico, quanto Bolsonaro.
O resto do que falou na ONU é, também, mentira e estelionato.
DEBOCHE
Em tudo, a começar pelas queimadas e pela devastação das instituições científicas que as estudam e monitoram, Bolsonaro lança a fumaça da sua ignorância, do seu obscurantismo, do seu ódio à ciência e ao estudo.
Mas é especialmente no que se refere à pandemia de COVID-19, que ele se torna mais ridículo – embora, mais sinistro, considerando que o país, na segunda-feira, já estava com 138 mil mortos devido à epidemia.
Mas, disse Bolsonaro, no dia seguinte, na ONU:
“Desde o princípio, alertei, em meu País, que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego, e que ambos deveriam ser tratados simultaneamente e com a mesma responsabilidade. Por decisão judicial, todas as medidas de isolamento e restrições de liberdade foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federação. Ao Presidente, coube o envio de recursos e meios a todo o País.”
É mentira que “por decisão judicial, todas as medidas de isolamento e restrições de liberdade foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federação”.
O Supremo Tribunal Federal (STF) cansou de esclarecer que jamais tomou qualquer decisão dando aos governadores a direção do combate à epidemia. O que o STF fez foi impedir que Bolsonaro impusesse sobre os Estados uma política de genocídio. Como disse o ministro Gilmar Mendes:
“O Supremo na verdade não diz que os Estados são responsáveis pela saúde. Disse apenas que isso era uma competência compartilhada. Mas o presidente esquece essa parte e diz sempre que a responsabilidade seria do Supremo e dos Estados. Se de fato se quer mostrar isso do ponto de vista político, isso é um problema” (v. HP 15/07/2020, Gilmar escreve certo por linhas tortas).
Bolsonaro, entretanto, resolveu mentir na ONU.
Quanto ao resto, é provável que a maioria dos leitores não tenha dificuldade em identificar esse esgoto:
“Desde o princípio, alertei, em meu País, que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego, e que ambos deveriam ser tratados simultaneamente e com a mesma responsabilidade.”
Desde o início, Bolsonaro disse que a pandemia não existia, ou que era “uma gripezinha”, ou que as pessoas deviam morrer mesmo.
Por exemplo, algumas (poucas) declarações suas:
– 9 de março de 2020: “… a questão do coronavírus, no meu entender, está superdimensionado o poder destruidor desse vírus”.
– 17 de março de 2020: “Esse vírus trouxe uma certa histeria. Tem alguns governadores, no meu entender, posso até estar errado, que estão tomando medidas que vão prejudicar e muito a nossa economia”.
– 24 de março de 2020: “Pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria. Seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”.
– 27 de março de 2020: “Não estou acreditando nesses números em São Paulo”.
– 29 de março de 2020: “O vírus tá aí, vamos ter de enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, pô, não como moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida, todos nós vamos morrer um dia”.
– 1º de abril de 2020: “O vírus é igual a uma chuva. Ela vem e você vai se molhar, mas não vai morrer afogado”.
– 28 de abril de 2020: [ao lhe ser comunicado que o Brasil já tinha 78 mil mortos]: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.
– 02 de junho de 2020: “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”.
– 31 de julho de 2020: “Morre gente todos os dias de uma série de causas. É a vida, é a vida”.
– 06 de agosto de 2020: “A gente lamenta todas as mortes, vamos chegar a 100 mil, mas vamos tocar a vida e se safar desse problema”.
Agora, estamos com 138 mil mortos, e, como disse o prefeito de Salvador, ACM Neto, presidente nacional do DEM, a principal responsabilidade é de Bolsonaro.
A prova é o discurso de Bolsonaro na ONU, terça-feira, em que ele diz:
“… parcela da imprensa brasileira também politizou o vírus, disseminando o pânico entre a população. Sob o lema ‘fique em casa’ e ‘a economia a gente vê depois’, quase trouxeram o caos social ao país”.
Quem trouxe o caos social ao país foi ele, Bolsonaro.
Mas essa declaração tem o mérito, finalmente, de ser clara: se dependesse dele, nem as medidas que foram tomadas contra a disseminação da COVID-19 teriam sido tomadas.
Os mortos, portanto, teriam sido pelo menos o dobro (segundo um estudo estatístico, talvez fossem multiplicados por 3,2).
Quanto às medidas que ele diz ter tomado, nenhuma delas, a começar pela magnitude do auxílio-emergencial e pela verba para os Estados, foram de sua iniciativa.
Pelo contrário, foram medidas tomadas contra ele.
Porém, o mais ridículo é sua preocupação com a carestia dos insumos contra a epidemia:
“Somente o insumo da produção de hidroxicloroquina sofreu um reajuste de 500% no início da pandemia.”
Muito importante para um produto que, quanto à COVID-19, é coisa de vigaristas como Trump e Bolsonaro.
Sobre Trump, aliás, Bolsonaro é mais aberto do que aquele ministro de um país vizinho que queria ter “relações carnais” com os EUA. Diz ele (Bolsonaro, não o ministro, que já deve, a essa hora, estar dando coices no Inferno):
“Em meu governo, o Brasil, finalmente, abandona uma tradição protecionista e passa a ter na abertura comercial a ferramenta indispensável de crescimento e transformação”.
Para quê?
Ora, leitor, segundo Bolsonaro:
“O Brasil saúda também o Plano de Paz e Prosperidade lançado pelo Presidente Donald Trump”.
E ficamos, hoje, por aqui.
CARLOS LOPES