Além do app, a Pão Diário imprimiu livros e folhetos, e também ofereceu palestras e outros eventos para os agentes públicos da área
O uso e aparelhamento da estrutura do Ministério da Justiça e Segurança Pública para divulgar aplicativo bíblico aos servidores da pasta virou alvo de questionamentos pela Câmara dos Deputados.
No governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), o laicismo do Estado brasileiro é diuturnamente desrespeitado.
O Estado brasileiro é laico/secular, isso, teoricamente, prega a desagregação da religião e os valores sobre os atos governamentais. Numa democracia, a pluralidade de crenças e valores é incalculável, justamente por pousar sobre a liberdade. Assim, o Estado deve agir com o máximo de neutralidade e igualdade possível em relação às mais diversas pautas, por isso, a laicidade é um princípio crucial para a manutenção da democracia e os direitos individuais e coletivos.
O artigo 5º, inciso VI, da Constituição de 1988, assegura liberdade de crença aos cidadãos, conforme se observa:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”
PROPAGANDA ‘INSTITUCIONAL’ RELIGIOSA
O app, chamado Pão Diário, foi criado exclusivamente para o funcionalismo público e armazena 365 mensagens “devocionais” — uma para cada dia do ano —, e recebeu o reforço da rede interna do órgão para a propaganda institucional religiosa.
Segundo autoridades, a cooperação — já que o projeto é desenvolvido por uma OSC (Organização da Sociedade Civil) de mesmo nome do app —, firmada em 2021 visa “fornecer assistência espiritual a profissionais da segurança pública”.
O questionamento às mensagens, que ferem a neutralidade do Estado laico, é do gabinete do deputado federal Ivan Valente (PSol-SP), que protocolou pedido via LAI (Lei de Acesso à Informação) em que exige explicações sobre o tema.
APARELHAMENTO RELIGIOSO
No aplicativo, as mensagens enviadas aos servidores indicam preferência ao cristianismo no material divulgado na intranet: “Quem é Jesus”, “Os Evangelhos” e outro produto, o podcast “O Senhor é Meu Pastor” são exemplos de como é tratada a esfera religiosa pela Pão Diário.
A OSC já colaborou com o Exército, entregando 2 mil exemplares de livro intitulado “Pão Diário – Edição Militar”, ao preço de R$ 11,2 mil.
Com a parceria com o MJ, segundo a própria Pão Diário, mais de 50 mil servidores entraram em contato com a plataforma.
VIOLAÇÃO DA GARANTIA CONSTITUCIONAL
Em representação entregue à PGR (Procuradoria-Geral da República), Valente classifica a situação como “incompatível com o ordenamento pátrio (…), o que torna imperativa a instauração de procedimento para apuração de ilegalidade frente à violação da garantia constitucional da laicidade do Estado e à liberdade de consciência e crença”.
Oficialmente, o Ministério da Justiça garante que não houve investimento de dinheiro público para a realização da parceria. Contudo, em reunião realizada em 13 de abril de 2021, o desenvolvedor do projeto e presidente da OSC Pão Diário, Edilson Freitas da Silva, pontuou que o ministério poderia atuar em benefício da empresa como forma de compensação.
De acordo com a ata que o portal Metrópoles teve acesso, Edilson tratou de curso de capacitação para capelães, realizado pela OSC. As palestras seriam divulgadas no ministério, em nível institucional, pelas assessorias de comunicação das instituições dos profissionais de segurança pública federais e estaduais.
Também estaria prevista a disponibilização de bolsas, pagas pela pasta, para capelães. O financiamento para pagamento das horas/aula dos professores dos cursos e a intermediação na Segen (Secretaria de Gestão de Ensino em Segurança Pública), órgão subordinado ao MJ, também estariam no pacote.
“SOLIDIFICAÇÃO DE VALORES INSTITUCIONAIS”
Mensagem eletrônica disparada no sistema interno do Ministério da Justiça apresenta o programa com teor religioso. De acordo com o texto, a pasta “disponibiliza o aplicativo (…) a todos os profissionais da área interessados em reflexões positivas, planos de leitura, podcasts (…), vídeos e notícias que acolhem e proporcionam momentos de paz para o usuário.”
O documento também pontua que o aplicativo está nas versões IOS (para Iphones) e sistema Android. Por meio do Pão Diário, ainda de acordo com a mensagem eletrônica, é possível acessar a bíblia e ouvir “a rádio web 24 horas, a qual oferece música, estudos e mensagens abençoadas que confortam aqueles que acompanham o conteúdo gratuito”.
Em resposta ao deputado Ivan Valente, a pasta indicou que o texto em questão “é uma ação de divulgação de um dos produtos do Projeto de Assistência Espiritual para os Profissionais de Segurança Pública no âmbito do Pró-Vida”.
O ministério ainda atribuiu ao auxílio religioso objetivo de “solidificação dos valores institucionais, humanização do operador de segurança pública, aumento da motivação”, além do “fortalecimento da união familiar” e “diminuição dos desvios de conduta”.
INSTITUCIONALIZAÇÃO
A ouvidoria da pasta indicou, ainda, que o projeto está “alicerçado em um Eixo de Valorização dos Profissionais de Segurança Pública, o qual compreende a promoção de ações de valorização e melhoria da qualidade de vida, por intermédio de programas, projetos e ações nas áreas de atenção biopsicossocial, de saúde e segurança do trabalho”.
A pasta argumentou, ainda, que o e-mail é exemplo de “atos discricionários da autoridade administrativa” — ou seja, receber ou não mensagens com este teor dependem unicamente da vontade do agente público.
O MJ também justificou que o projeto “transcende a religião, tendo a espiritualidade como ação voltado para o sentido da vida, integridade interior, equilíbrio emocional, otimização do potencial pessoal, ética, moralidade, probidade, responsabilidade e humanidade.”
Na resposta ao pedido via LAI, apesar de registrar em diversos momentos o cunho cristão do projeto, o MJSP pontua que o objetivo do projeto “não são os dogmas religiosos, mas a mobilização da fé em prol do alcance da valorização da cultura organizacional”.
Além do aplicativo colocado disponível aos profissionais de Segurança Pública, a Pão Diário imprimiu livros e folhetos, bem como ofereceu palestras e outros eventos para os agentes da área.
O acordo de cooperação técnica entre a Pão Diário e o MJSP foi firmado em 2021, sendo publicado no DOU (Diário Oficial da União), em 3 de setembro daquele ano.
M. V.