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Lovely Warren, prefeita de Rochester, a terceira maior cidade do Estado de Nova York, anunciou na quinta-feira a suspensão dos policiais envolvidos no assassinato de um negro, que sofria de problemas mentais, em plena rua, crime ocorrido em março e que só se tornou público agora, graças à divulgação de um vídeo da própria polícia, obtido por interpelação judicial. Também haverá uma investigação sobre o chefe de polícia, que informara que a morte havia sido por “overdose”.
Relatório da autópsia, que considerou a morte de Prude um homicídio, determinou como causa a asfixia. Na véspera, a família de Daniel Prude, de 41 anos, deu uma entrevista para apresentação do vídeo. Um memorial com velas e seu nome foi erguido no local do crime.
Manifestantes protestaram diante da sede da polícia em Rochester, para exigir que os policiais sejam demitidos e levados a julgamento por assassinato. Na quinta-feira, um protesto foi realizado na cidade de Nova York.
Os policiais – eram sete, todos brancos – vieram no dia 23 de março, encontraram-no na rua, num dia muito frio, nu, algemaram-no, supliciaram-no e acabaram por asfixiá-lo, até que ele não respirasse mais, viesse uma ambulância e sete dias depois fosse declarado morto. Só agora com a exibição do vídeo foi possível se saber o que de fato aconteceu.
INDEFESO
“Alguém acha que nosso chamado foi para que eles fizessem isso? Vejam as imagens: há um homem indefeso, totalmente nu, jogado no chão. Quantos irmãos mais terão que morrer para que a sociedade entenda que isso precisa parar?”, denunciou o irmão, Joe Pruder, em nome da família.
“O Departamento de Polícia, nosso sistema de saúde mental, nossa sociedade e eu falhamos com Daniel Prude”, disse a prefeita Warren, em pedido de desculpas em público. Ela é negra, assim como o chefe de polícia, LaRon Singletary.
A conduta dos policiais é “inaceitável para qualquer ser humano, não creio que existam problemas mentais que justifiquem tais procedimentos e isso precisa ser investigado e punido severamente”, acrescentou.
O vídeo é chocante, ainda mais em um momento em que o presidente Donald Trump diz que o problema do país é a “falta de lei e ordem” e que as ruas da América estão entregues “a turbas radicais”.
Tentativa de Trump de fazer do medo que ele próprio atiça a chave para a reeleição em 3 de novembro, ao invés do que tem prevalecido nas pesquisas: enorme indignação por sua incúria e obscurantismo diante da pandemia, que resultou em mais de 180 mil mortos e devastação econômica.
SURTADO
Sob surto, Prude foi algemado pelos policiais, depois de deixá-lo permanecendo nu e ajoelhado no meio da rua, em uma noite de neve. Supostamente por que estaria cuspindo, enfiaram um capuz sobre sua cabeça e em seguida, pressionaram seu rosto na calçada por dois minutos, mostra o vídeo da câmera corporal do agente da lei.
Policiais em volta riem da cena, que para qualquer um de bom senso pareceria no mínimo uma humilhação, e até tortura.
Prude, com a voz abafada pelo capuz, implora ao policial branco que pressiona sua cabeça para o chão que o solte. Os gritos de Prude vão se tornando gemidos angustiados, enquanto o policial mantém a sevícia, ao mesmo tempo em que diz: “acalme-se” e “pare de cuspir”.
Os apelos de Prude de “pare”, “eu preciso…” são ignorados, até que, dois minutos depois, ele já não se move e fica em silêncio. Só então, os policiais acionam o socorro médico, depois de perceberem um líquido branco escorrendo da boca dele.
ASFIXIADO COM CAPUZ
Ao que parece, aqueles capuzes negros enfiados na cabeça do inimigo nos muitos filmes glorificando a “guerra ao terror”, mudaram de cor, ficaram brancos, e supostamente serviriam para proteger os policiais da saliva de um detido. Nos últimos anos, várias mortes tiveram como fator o uso desses capuzes.
Familiares haviam chamado o 911 – equivalente aqui a chamar o Samu e os bombeiros – porque Prude havia surtado e saído de casa. O que ele precisava era de cuidado e assistência. Horas antes, ele ficara agitado durante um trajeto de trem, fora retirado e levado por policiais para exame em um hospital e depois deixado na casa do irmão. No meio da madrugada, voltou a ficar desorientado, abriu a porta e saiu.
“Eu fiz uma ligação para pedir ajuda para meu irmão. Não para que meu irmão fosse linchado”, revoltou-se Joe Prude.
Testemunho da tia, Letoria Moore, revelou que o quadro de Daniel se agravara depois da morte da mãe e de um irmão há poucos anos, tendo perdido outro irmão antes disso. Nos últimos meses, ele ficava indo e voltando entre sua casa em Chicago e a casa do irmão Joe em Rochester, porque sentia necessidade de ficar perto dele. Quando ligou dois dias antes de sua morte, relatou, “ele era o Rell normal que eu conhecia”.
“DESUMANA E EVITÁVEL”
A seção nova-iorquina da ACLU, principal entidade dos EUA de defesa das liberdades democráticas, denunciou que “Daniel Prude precisava de assistência de saúde mental”. “Em vez disso, ele foi algemado em temperaturas quase congelantes e morto pela polícia de Rochester. Sua morte foi injusta, desumana e evitável. Exigimos justiça para Daniel Prude e sua família.”
“Sua morte foi injusta, desumana e evitável”: palavras que definem com precisão o que aconteceu. Se há, em alguns lugares nos EUA, alguns cuja revolta tenha extrapolado, esse é um problema menor diante dessa incapacidade da polícia americana de ver um seu semelhante ao se deparar com qualquer situação de conflito.
ÍNDIO BOM
Décadas de ocupação em países do Terceiro Mundo habituaram as “forças da lei” a agirem nos guetos – “inner cities”, como chamam agora – como se estivessem numa zona de guerra diante do inimigo, que pode ser qualquer um, onde tudo se resolve, como nos filmes de Hollywood, enfiando o pé na porta ou, melhor ainda, explodindo a porta. E atirando primeiro, ou supliciando primeiro, e perguntando depois.
O que se soma ao racismo encruado, marcado no tecido social americano com cruzes em chamas da Klan e leis Jim Crow (que normatizavam a segregação). E que tem como gatilho a incitação neofascista de Trump, a apologia do muro, o apelo cotidiano ao “nós contra eles”, o vômito das fake news. As galinhas, como diz o ditado norte-americano, estão de volta para ciscar em casa.