Tanto o ministro quanto a mãe dele, a senadora Eliane Nogueira, se fingem de mortos, em silêncio sepulcral sobre esse malfeito
Postado em frente à ambulância, o prefeito de Miguel Leão (PI), Roberto Leão (PP), agradece efusivamente pela entrega do veículo. Isto faz parte de ação eleitoreira do senador licenciado, ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP), que disputa com o PT no Estado, o Palácio de Karnak.
“Estou aqui em Teresina recebendo essa belíssima ambulância, fruto de emenda do nosso ministro Ciro Nogueira juntamente com nossa senadora Eliane Nogueira [mãe de Ciro, que o substitui no mandato parlamentar]. E nós de Miguel Leão só temos a agradecer essa parceria que tem dado certo, que tem ajudado muitos municípios”, diz o prefeito da cidadezinha com cerca de 1.500 habitantes. Esse tipo de evento tem se repetido em todo o Estado.
Ciro Nogueira é um dos principais líderes do Centrão, bloco de partidos que dá apoio a Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, no Congresso em troca de cargos e verbas.
O Piauí tem sido inundado por ambulâncias, várias dessas distribuídas a aliados do clã Nogueira. Isso tem sido turbinado pelo orçamento das chamadas emendas de relator, ou “orçamento secreto”, que se tornaram um dos principais instrumentos de negociação com o Congresso durante no governo Bolsonaro.
TOMA LÁ DÁ CÁ GRASSA SOLTO
O presidente da República tem usado o mecanismo (orçamento secreto) para angariar apoio no Legislativo para pautas do interesse do Planalto. A decisão sobre a distribuição dessas emendas ficou concentrada na cúpula do Congresso Nacional, o que desencadeou críticas pela falta de transparência na alocação dos recursos orçamentários.
De acordo com sistema do FNS (Fundo Nacional de Saúde), o Piauí teve propostas aprovadas para financiamentos de 123 ambulâncias no ano passado — 18% de total de 683 para o país. É como se quase 1 ambulância de cada 5 financiadas fossem para o Estado do ministro.
Para se ter uma ideia, Alagoas, com população parecida à do Piauí, teve apenas 11, sempre de acordo com o portal do FNS. O Estado do ministro também teve mais repasses aprovados para a compra deste tipo de veículo do que as regiões Centro-Oeste, Norte e Sul isoladamente em 2021.
Apenas a senadora Eliane Nogueira (PP-PI) indicou R$ 8,2 milhões para compra de ambulâncias por meio das emendas de relator, segundo prestação de contas dela — no total, as indicações somam R$ 399,2 milhões.
O valor indicado por ela para ambulâncias daria para comprar 33 veículos do tipo estilo furgão ou 35 modelo pick-up.
EM CAMPANHA COM BENESSES DO GOVERNO
Algumas das ambulâncias estão chegando a aliados neste ano, às vésperas da eleição. E a senadora costuma colher os louros políticos dos repasses, ao postar vídeos com agradecimento dos políticos ou anunciando novas cidades beneficiadas.
“Por ser uma área prioritária em meu mandato, fico muito feliz em dar boas novas. O Ministério da Saúde pagou mais de R$ 1,8 milhão em emendas para compra de oito ambulâncias. Elas [Essas] irão reforçar o atendimento à população”, escreveu a senadora nas redes sociais.
No post, ela anuncia que as cidades beneficiadas seriam Campo Largo do Piauí, Caxingó, Cocal de Telha, Colônia do Gurgueia, Dirceu Arcoverde, Inhuma, Milton Brandão e Morro Cabeça no Tempo — na época da publicação, apenas uma, a primeira dessas, não era governada pelo PP.
Embora nem todas as ambulâncias financiadas no Piauí sejam relativas a emendas do clã Nogueira e aliados, o PP é claramente o partido com mais prefeituras beneficiadas — foram encontrados, ao menos 36 veículos aprovados para municípios da sigla apenas em 2021.
‘PEDIDO DE SOCORRO’ E COMPADRIO
Roberto Leão, prefeito da cidade de Miguel Leão, além de ser do mesmo partido do ministro, aparenta grande proximidade política nas redes sociais. Ele disse ao jornal Folha de S.Paulo que recebeu a ambulância após fazer um ofício pedindo socorro.
“No meu caso, eu fiz uma solicitação através de um ofício. Eu o apoiei para senador então eu posso pedir socorro para o senador, como eu faço com meus deputados federais também”, afirmou o prefeito.
“[O Estado do] Piauí tem três senadores. Como o município que sou prefeito é pequeno, os outros dois senadores nem olham, não tem retorno político”, tenta despistar o prefeito.
Leão afirmou que esse tipo de ambulância é grande demanda nas cidades do interior, uma vez que não há hospitais em boa parte dessas e é necessário fazer transferências constantes.
BEM ORIENTADO
Ele ainda criticou a saúde estadual, governado pelo PT, atualmente adversário de Nogueira, por supostamente não cumprir o cofinanciamento da saúde, o que aumentaria a necessidade de os prefeitos buscarem mais recursos.
Em Miguel Leão, a nova ambulância se juntará à outra, conseguida em 2017, segundo o prefeito.
Os repasses para compra deste tipo de equipamento acontecem pelo chamado sistema fundo a fundo, no qual o FNS deposita os valores para as compras na conta dos fundos municipais de saúde. Devido à praticidade e rapidez, boa parte das emendas de relator vai parar no FNS.
CHANCELA DO MINISTÉRIO DA SAÚDE
Para que o valor seja pago, é preciso aprovação da cúpula do Ministério da Saúde, que publica portaria. Na prática, é aí que entraria o negociador político do governo, o próprio ministro Ciro Nogueira, que daria o ‘ok’ para que os empenhos de fato ocorram, segundo agentes políticos.
Desde que Nogueira assumiu o ministério, o número de propostas de ambulância financiadas pelo FNS no Estado também deu um salto — foram 27 em 2017, 11 em 2018, 4 em 2019, nenhuma em 2020, até chegar a 123 no ano passado, quando o senador do PP assumiu o posto no Executivo — ministro-chefe da Casa Civil.
Os modelos contabilizados no levantamento são as chamadas ambulâncias tipo A, as mais simples e mais requisitadas, com valores entre R$ 235 e R$ 249 mil.
AÇÃO OSTENSIVA
Adversário político de Ciro Nogueira no Piauí, o ex-ministro da Saúde do governo Dilma Rousseff (PT) e senador Marcelo Castro (MDB-PI) disse ao jornal O Globo que o ministro chegou a barrar o empenho de recursos indicados por ele.
“Em 40 anos de vida pública, nunca escolhi partido ou parlamentar para destinar recursos, quando ocupei cargos importantes”, disse Castro.
“Quando fui ministro da Saúde, por exemplo, enviei recursos para todos as prefeituras que estavam aptas a receber as verbas do Ministério”, afirmou, ressaltando que fica feliz com “qualquer destinação de recursos para o Piauí, seja de qual grupo político partir”, devido à carência do Estado nesta área.
TOTAL FALTA DE TRANSPARÊNCIA
Aspecto destacado por quem conhece o sistema fundo a fundo turbinado por emendas é que pode abrir brecha para casos como o do deputado Josimar de Maranhãozinho (PL-MA), flagrado com dinheiro e suspeito de desviar recursos da Saúde viabilizados por meio de emendas parlamentares — ele nega.
Para o médico sanitarista e professor da FGV Walter Cintra Ferreira, a análise dos gastos em saúde deveria ser técnica e transparente.
“Quando você distribui um equipamento público, o critério da distribuição deveria ser público e prestando contas por quem está mandando ambulância para o município A e não estou mandando para o município B. Essa história das emendas está levando a este tipo de distorção”, critica.
Ferreira afirma que o critério é casuístico e ineficaz. O critério é político. A ação governamental é para beneficiar aliados do governo no Congresso, no caso, o parlamentares do Centrão.
‘DESSERVIÇO’
“Temos um recurso para publicar na saúde que deveria ser realizado de maneira a provocar o melhor impacto possível nas condições da saúde da população e olhando para as condições de desigualdade de cada município. Quando isso é esquartejado pelos deputados e cada um distribui para o seu território eleitoral, é um desserviço”, afirma.
Questionado, o Ministério da Saúde afirmou que todo o recurso liberado “passa por uma rigorosa análise técnica realizada por servidores qualificados das secretarias finalísticas”. Quem acredita nisso?
No entanto, a pasta afirma, por meio de nota, que “não existe nenhuma influência de gestores da pasta nas indicações das chamadas emendas de relator do Orçamento, o que é de competência exclusiva do Congresso Nacional”.
Tanto o ministro Ciro Nogueira quanto a mãe dele, a senadora suplente Eliane Nogueira (PP-PI), se fingem de mortos, em silêncio sepulcral sobre esse malfeito.
M. V.