O Cinema com Partido – 2ª Mostra Democrática realizou, na quinta-feira (6), a exibição de “Amazônia em Chamas”, do diretor John Frankenheimer, que aborda a vida do líder seringueiro e ambientalista Chico Mendes e a destruição da floresta amazônica.
A partir dos anos 80, a exploração predatória de madeira começou a devastar a Amazônia e consequentemente colocar em risco o trabalho dos seringueiros. Enquanto a floresta corria o risco de ser destruída para a grilagem de terra e a criação de gado, Chico Mendes e um grupo de ativistas lutavam para salvar os seringueiros e suas terras.
A obra aborda, ainda, os embates de Chico Mendes com criadores de gado, passando pela liderança de seu sindicato à campanha internacional contra a devastação da Floresta Amazônica, até a emboscada que marcou o fim de sua vida.
O filme que tem Raul Julia no papel de Chico Mendes, além de Sonia Braga e Carmen Argenziano no elenco, foi premiado com o Globo de Ouro nas categorias Melhor Filme e Melhor Ator (Raul Julia).
A sessão foi acompanhada de um debate com o cientista Ricardo Galvão, professor titular do Instituto de Física da Universidade de São Paulo e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), de onde pediu exoneração após negar-se a compactuar com o incentivo ao desmatamento feito pelo governo Bolsonaro.
OBSCURANTISMO E NEGACIONISMO
Ao responder os questionamentos das lideranças estudantis que participaram do debate, Ricardo Galvão demonstrou como o governo de Bolsonaro atua para impedir que a visão científica se contraponha à sua política negacionista.
Galvão considera que há uma diferença entre o obscurantismo e negacionismo.
“O obscurantismo sempre foi associado a posições religiosas e extremistas, para pessoas muito fundamentalistas, que se opunham a questões científicas e questionavam as verdades, com base em seus livros sagrados e como era esse obscurantismo que nós tratamos no passado, e que muita gente confunde com negacionismo”.
“O negacionismo moderno é muito pior e não é necessariamente ligado à religião. O negacionismo é uma pseudociência, que é feita questionando constantemente, de uma forma ardilosa, métodos, teorias e resultados científicos que, de uma certa forma, afeta e conta com o interesse de grupos poderosos ou ideologias políticas ou, então, atrapalha a zona de conforto de muita gente e muitos grupos poderosos”.
“Por exemplo, as primeiras ações negacionistas mais claras nessa direção que nós tivemos foram nos Estados Unidos com a indústria produtora de cigarros, que começou a levantar falsas hipóteses, e começou a colocar falsos resultados, para contestar os resultados da ciência, que já estavam a mostrar os efeitos danosos para o pulmão com o câncer, devido ao fumo”.
“Isso continua também agora, na questão do Meio Ambiente também, com muita gente se opondo, motivada por esses interesses, em particular no caso do Brasil, pelos maus ruralistas. O efeito desse negacionismo está sendo utilizado de uma forma ardilosa pelo governo”.
“Algumas pessoas acham que o governo fala besteiras, só porque ele é medíocre. Não é só porque ele é medíocre. Muita coisa é bem pensada. Por exemplo, [Bolsonaro] acabou de mencionar essa questão de acusar a China, de ter produzido o Covid como uma guerra, e porque que ele fez isso? O governo está usando esse ardil para levantar uma fumaça, porque ele está sendo muito afetado pela CPI do Covid-19, na qual ele usou também do negacionismo pra ir contrário a isso”.
OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA
Ao traçar um paralelo entre o ocorrido na Amazônia durante a ditadura com o atual momento, em que o governo Bolsonaro incentiva o desmatamento da floresta, o cientista apontou que a primeira medida a ser tomada é que “independente de qualquer coisa, por política e qualquer ideologia político-partidária, que nós nunca mais votemos em políticos medíocres que neguem a ciência”.
“Muito dessa ocupação predatória da Amazônia realmente começou em meados dos anos 70, no regime militar. Os militares tinham uma preocupação muito grande, com a questão da soberania da Amazônia. Eles realmente estimularam a ocupação da Amazônia falando o que eles chamavam, de seguir a ‘farra do Boi’. O que aparece ali, de quem mandou matar o Chico Mendes, eles realmente acreditavam que iriam transformar a Amazônia numa área de exploração capitalista predatória. Inclusive eu lembro de uma citação do Delfim Netto que dizia que ‘a maneira de ocupar a Amazônia seria fazer de lá um faroeste, e que mais tarde seria mandado o xerife’. O xerife nunca foi. Então, essa mentalidade inicial de ocupação da Amazônia foi que ocorreu mesmo.
“Eu quando estava no INPE, fui algumas vezes à Amazônia e pude ver que, infelizmente, alguns grupos ainda têm essa mentalidade. Vocês vejam o interessante, já que foi citado no filme, o próprio Chico Mendes, quando ele começou o movimento, ele não tinha consciência da sua importância da Amazônia, do ponto de vista da preservação da natureza para a humanidade. Ele tinha uma preocupação muito grande, é claro, de exploração e de preservação das seringueiras, mas ele não tinha essa consciência, porque naquela época não se tinha essa consciência estabelecida, da importância da Amazônia para a questão do desenvolvimento sustentável, da biodiversidade”.
“Qual é a consequência? Em meados de 1970 por aí, a Amazônia brasileira era razoavelmente preservada. Mas, de 1980 pra cá, já desmatamos 20% da Amazônia, e é um problema seríssimo, que afeta todo o país, e a maneira de trabalhar, que foi a pergunta quanto a isso, a primeira coisa que devemos fazer é nunca mais, independente de qualquer coisa, por política e qualquer ideologia político-partidária, que nós nunca mais votemos em políticos medíocres que neguem a ciência”.
“Não podemos mais aceitar isso porque só vamos ter um desenvolvimento sustentável, socialmente justo e equânime, se tivermos políticas públicas fortemente embasadas no progresso científico e tecnológico. Preservar. A Amazônia é muito importante, então o que nós devemos fazer é proteger a Amazônia e nós sabemos lutar nessa direção e promover um desenvolvimento sustentável, tanto lá como nos outros biomas brasileiros”.
PRESERVAÇÃO
O professor Galvão destacou a necessidade de defender a preservação das florestas, assim como o manejo sustentável da Amazônia como uma alternativa viável e lucrativa. “Preservação, mas, mais do que ensinar as crianças, é saber incluir essa importância no povo, dessa preservação das florestas, porque o que acontece, na nossa sociedade moderna, nós ficamos muito imediatistas e utilitários, nós só damos importância para aquilo que é útil imediatamente e às vezes, ficamos muito longe da realidade das coisas”.
“Hoje, como nós temos agora, aspectos positivos das redes sociais, as pessoas poderiam atuar muito mais fortemente, nessa questão de divulgar essas culturas, nessa importância da floresta. Eu tenho mencionado em algumas palestras que tenho dado um fato que me emocionou bastante. Foi ano passado, quando eu tive um embate com o presidente Bolsonaro. As pessoas me paravam na rua, no metrô em São Paulo, fazendo perguntas e nisso uma senhora veio a mim com o celular na mão e eu perguntei se ela ia gravar ou tirar uma foto, ela não ia, na verdade ela veio me agradecer, falando: ‘professor, eu agradeço muito que o senhor fez, porque para mim, eu sou paulistana, nasci aqui e cresci aqui em São Paulo. Para mim, a floresta amazônica era uma matinho no norte do país que não tinha nada a ver com a minha vida. O que aconteceu me fez abrir os olhos para a importância da preservação da Amazônia e de outros biomas brasileiros. Eu quero dizer pro senhor que tanto no meu trabalho, como na minha paróquia, eu criei dois grupos na internet para trabalhar a defesa do meio ambiente’”.
“Então, essa é a consciência que é importante, mas temos que estimular essa consciência ainda mais, principalmente nos jovens e saber que a preservação da floresta não é só porque é uma coisa dela. O desenvolvimento sustentável da floresta é extremamente viável, do ponto de vista econômico e rentável. O ministro Salles, não sei se vocês viram recentemente, uma entrevista dele na Jovem Pan que foi horrível. Ele falou inclusive que não conhece nenhuma empresa na sociedade, por exemplo, de cosmético que explora Amazônia de uma forma sustentável. Ele mente! Não vou fazer propaganda, mas aqui nós temos a Natura. A Natura explora toda uma produção de óleo de palma, do azeite de dendê, na Amazônia, que é feita de uma forma sustentável, sem desflorestar nada. A produção de Açaí na Amazônia, na mesma área, em 1 hectare, produz 10 vezes mais do que a exploração de gado. Então não basta ter só a cultura de preservar, nós temos que mostrar que essas coisas são viáveis, são inteligentes, usando novamente a ciência e a tecnologia moderna”.
PAPEL DAS FORÇAS ARMADAS
“O INPE funciona próximo da Aeronáutica, aliás, ocupa o terreno da própria Aeronáutica e nem sei se até hoje já foi regulamentado para o INPE. Mas o INPE não é Força Armada, o INPE é uma instituição civil. O INPE foi criado por um oficial da Aeronáutica, o dr. Fernando de Mendonça, que eu considero um dos maiores benfeitores da ciência brasileira, mas ele era o chá da Aeronáutica, mas foi fazer doutorado em Stanford, exatamente quando começou aquela disputa dos Estados Unidos da América pelo espaço. Ele se deu conta da corrida espacial e da importância do Brasil desenvolver um programa espacial. Ele criou o INPE como uma instituição civil, porque ele sabia plenamente que são claras as aplicações militares contra ela, mas ele sabia como são relevantes essas aplicações, e ele sabia também que as aplicações militares não podiam dominar as importantíssimas aplicações civis. O INPE não é uma aplicação militar”.
“Agora vamos falar sobre as três Forças Armadas. Elas sempre desenvolveram um papel muito importante na Amazônia. Uma vez, quando estive na Amazônia para servir no serviço militar na Marinha, e eu toda vez que estava na Amazônia, era um serviço espetacular, atendendo os ribeirinhos, levando médicos, barcos hospitalares. O Exército também tem um trabalho espetacular de defesa das nossas fronteiras, também atendendo as populações do interior, até mesmo com pesquisadores, e a Força Aérea no transporte, no monitoramento de contrabando principalmente na Amazônia. Isso tudo está correto, isso é bom e isso é meritório e o Brasil necessita disso”.
“No entanto, as Forças Armadas não têm, de maneira nenhuma, que se meter na fiscalização do desmatamento, na fiscalização das minerações ilegais, na proteção dos índios, porque não são o órgão apropriado para isso. Os órgãos apropriados são o Ibama, ICMBio, o Incra. Nós temos que fazer isso de uma forma legal, com os institutos civis, que infelizmente, o Ricardo Salles fez questão de desestruturar completamente. Nós precisamos recuperar o Ibama, e as Forças Armadas vão ajudar aonde? Vão ajudar como sempre ajudaram, na logística, ajudando inclusive, no apoio de guarda dos fiscais, porque eles correm risco de vida. O que aconteceu com Chico Mendes continua acontecendo hoje em dia. Então, também as polícias militares têm que ajudar, mas a fiscalização, a tomada de ações, tem que ser de ordem civil, independente das Forças Armadas”.
“Nós não podemos ter, como agora, uma decisão do Ministro Ricardo Salles, que um cientista do ICMBio e do Ibama para publicar um artigo, tem que pedir ordem superior acima dele, um superior burocrático que é um militar. Não podemos ter isso. Então as Forças Armadas têm papel importante na defesa do país, mas tem que continuar nesse papel, mas não se incluir nos trabalhos que devem ser feitos pelos organismos civis.
PERSEGUIÇÃO A CIENTISTAS
O professor Galvão também exemplificou como Bolsonaro atua na perseguição aos cientistas que se opõem ao governo, não por suas posições políticas, mas pela ciência ser “contrária ao que o governo quer que seja dito”.
E relembrou que os dois primeiros ministros da Saúde do governo Bolsonaro foram demitidos por seguir a ciência e não se submeterem ao seu negacionismo.
“Estamos começando a ver com preocupação o ressurgimento desse, vamos dizer assim, ataque entre aspas aos cientistas. É claro que não chegamos ainda de maneira nenhuma ao nível que aconteceu no regime militar, que foi muito mais intenso. E eles, os cientistas eram perseguidos no regime militar, não tanto pelos avanços científicos, mas sim pelas suas posições políticas. É natural que, na Academia, nós tenhamos uma posição política mais social, mais à esquerda. Isso é natural. Eles eram então perseguidos pelo seu posicionamento político. Agora, sob esse ponto de vista, embora agora não seja mais intenso, é mais preocupante porque os cientistas são perseguidos devido ao que eles produzem até com ciência, quando essa ciência é contrária ao que o governo quer que seja dito. Esse é um problema bastante sério”.
“Nós vimos agora, nessa CPI da Covid, não posso dizer nem que Mandetta, nem que o Teich, que eles sejam cientistas. Eles são médicos, atuantes como médicos, se bem que o Teich parece que tem algo que trabalha na ciência. Mas eles foram demitidos porque eram contrários a uma posição que, imagine, um presidente medíocre, que não conhece nada de nada, quer colocar, atrapalhando as ciências, usando exatamente essas artimanhas ardilosas dos negacionistas”.
Eu espero que nós saibamos contornar isso, porque não está sendo fácil para o governo atuar nessa direção. Nós temos agora, o que nós não tínhamos na ditadura militar, nós temos uma Academia Brasileira de Ciências (ABC) extremamente forte, que havia na época, mas não tinha tanta força, e também a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) extremamente forte, e eu vejo agora que a sociedade e a comunidade científica não vão se calar, de maneira nenhuma vão se calar.
REAÇÃO AO NEGACIONISMO
“A ciência no Brasil, não é feita só nas universidades. Também é feita nos institutos de pesquisa. São institutos de pesquisas governamentais, o próprio Butantan, instituto de pesquisa do Estado de São Paulo, a Fiocruz no Rio de Janeiro e o INPE do governo federal. Se nós olharmos para os países de fora, os países mais desenvolvidos têm a pesquisa ligada diretamente ao governo, mesmo fora da universidade. Isso realmente cria um problema, quando existe um governo autoritário e negacionista, como é o nosso caso, porque aí pode colocar pressão, como tentaram fazer comigo no INPE e estão tentando fazer no Ibama e no ICMBio. Pode vir pressão de cima para mudar, para cercear a divulgação de resultados ou mesmo tentar mudar alguns resultados. Eu espero que não tenham coragem de fazer isso”.
“E aí vem a questão de como nós reagimos a isso, porque sempre houve uma ligação entre ciência e política e política e ciência, isso é inevitável. Muitas das coisas que acontecem, muitos desenvolvimentos que acontecem, às vezes, são estimulados pela própria política, como a corrida espacial entre Estados Unidos e União Soviética, que provocou um desenvolvimento enorme que foi de certa forma estimulado pelo governo, apoiado pelos dois governos, aliás”.
“Então essa relação sempre há. O problema é como o cientista lida com isso. Falando de uma genérica, um cientista do INPE que tenha que produzir resultados sobre a Amazônia, por exemplo, já teve propostas no passado de que a divulgação de resultados, antes de serem divulgados, fosse deliberada por uma instância superior. Os pesquisadores do INPE sempre resistiram a isso. Isso não vem só do governo Bolsonaro, vem de antes também. Então, não se engane com políticos, se alguma coisa vai contra o que eles pensam, eles tentam colocar pressão para que aquilo não ocorra. Mas, felizmente, o que me deixa de certa forma esperançoso é que a comunidade científica hoje em dia é muito forte, enorme”.
“No caso do INPE, por exemplo, só para dar resposta, quando eu decidi ter aquele embate fortíssimo com o Bolsonaro, eu sabia que, se trouxesse o INPE à tona, a imprensa iria divulgar, e, principalmente, no cenário internacional, não haveria como o argumento do governo se sustentar. Um mês depois, no começo de agosto, tiveram dois trabalhos espetaculares, um produzido por um cientista da Nasa e o outro por um cientista alemão da Agência Espacial Europeia, provando que os dados do INPE estavam corretos. Então, hoje em dia, é esse meio de divulgação que nós temos, sendo que o acesso às publicações científicas tornam muito difícil essas ações nefastas do governo, que querem cercear o resultado científico de institutos sobre qual eles têm autoridade”.