LEONARDO WEXELL SEVERO E CAIO TEIXEIRA/COMUNICASUL
“Acredito que, sem dúvida, a nova Constituição política tem que nos permitir recuperar o Estado chileno, que hoje não nos pertence. A ditadura o entregou aos grupos econômicos para que fizessem uma festança com nossas riquezas. Eles saquearam o Estado, nossas empresas públicas foram entregues a grupos privados a preço vil, foi praticamente um presente da ditadura”.
A afirmação é de Hugo Gutiérrez, eleito em maio um dos 155 redatores da nova Constituição chilena – a primeira depois da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Ex-deputado federal, advogado de presos políticos, a destacada liderança do Partido Comunista do Chile defende a necessidade de “recuperar o cobre, o lítio, a biomassa marinha, o espectro radioelétrico, e tantas riquezas que atualmente estão nas mãos de grupos privados. Esta devolução tem que estar garantida na nova Constituição”.
“O povo nos deu a grande maioria, nos deu os dois terços para aprovar normas constituintes que nos permitam terminar com o saque dos grupos econômicos locais e das transnacionais”, acrescentou Gutiérrez, para quem o próximo passo decisivo será a eleição, no dia 21 de novembro, de Gabriel Boric à presidência e de um Congresso Nacional, que assegurem a implementação de um projeto que ponha fim ao neoliberalismo e contribuam para a construção de uma nova sociedade”.
Neste projeto, apontou, “é preciso garantir direitos sociais como a educação, como a saúde, a Previdência Social, a habitação, o trabalho, o direito a viver em um meio livre de contaminação. Estes são direitos mínimos que todos os povos necessitam ter. A Constituição tem que garantir o direito à autodeterminação dos povos, tanto no plano político, como o respeito aos seus recursos naturais”.
O constituinte chileno disse ter “plena identificação com o objetivo da busca da integração latino-americana, que coincide com o que se assinalou na VI Cúpula da CELAC (Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos), realizada na cidade do México sob os auspícios do presidente López Obrador, e cujo objetivo principal é, sem dúvida, começar a superar uma integração proposta pelo império, através da chamada OEA (Organização dos Estados Americanos), que só tem contribuído para os males do nosso continente”. “Todos já assumem que o golpe de Estado na Bolívia foi patrocinado pelo secretário-geral da OEA e não é possível mais mantermos uma integração sob o auspício de um organismo que, claramente, responde aos interesses do império norte-americano”, frisou.
Na avaliação de Hugo Gutiérrez, há em seu país três processos em curso. “Um é muito antigo, mas não menos relevante, que é a luta contra a impunidade dos crimes cometidos pela ditadura militar que sucedeu o golpe de Estado que derrotou o presidente socialista Salvador Allende Gossens. Esse processo de luta contra a impunidade, por verdade e justiça que vem ocorrendo no Chile, é uma das grandes conquistas do meu país, é essa vontade que veio se fortalecendo de que todos os crimes cometidos durante a ditadura sejam objeto de perseguição penal. Que não é possível diminuir nosso esforço por verdade e justiça”, assinalou.
Segundo o constituinte comunista, o mês de setembro é muito significativo para os chilenos, “quando se recorda o golpe de Estado, quando se recorda a morte do cantautor Victor Jara, o assassinato do ex-chanceler Orlando Letelier, em Washington-DC, por parte dos agentes de segurança da ditadura de Augusto Pinochet, e quando se recorda a morte do General Carlos Prats (comandante-chefe do Exército chileno) – na Argentina”.
“Há poucos dias, tivemos mais uma condenação contra os que violaram direitos humanos. Já se passaram 47 anos e seguimos prendendo violadores de direitos humanos. Creio que esta é uma grandeza de nosso povo: que nunca deixou de exigir verdade e justiça e um não à impunidade. Até hoje se segue prendendo agentes do Estado que formaram parte da ditadura e que violaram direitos humanos”, esclareceu.
O processo em curso, informou Gutiérrez, dará ao Chile “a primeira Constituição política feita pelo povo que, sem dúvida, vai romper com os privilégios da oligarquia chilena que durante anos gozou de todas as benesses que a ditadura entregou a estas minorias, a estes grupos econômicos que participaram do roubo do nosso país. E hoje, todas essas vantagens, todos esses benefícios, todo esse lucro acumulado pela oligarquia estão por terminar”.
E se isso pode passar com tranquilidade, explicou o constituinte, “se hoje podemos efetivamente propor uma nova Constituição política que desmonte o modelo neoliberal, isto está justamente alicerçado nessa luta contra a impunidade, porque os militares, as forças armadas, os violadores de direitos humanos sabem dessa vontade e dessa perseverança. Sabem que se obstaculizarem este caminho que está escolhendo o país rumo a uma nova Constituição que garanta a soberania popular, que garanta os recursos naturais, sabem que poderá demorar, mas serão encarcerados”.
De acordo com Gutiérrez, as forças antinacionais estão em xeque “diante da possibilidade de que o candidato de Apruebo Dignidad, Gabriel Boric, faça com que um governo realmente de esquerda chegue pela primeira vez ao Palácio de La Moneda”. “E se isso se soma a um parlamento de esquerda, que é uma decisão que o povo tem de tomar, nos permitirá as grandes transformações que o país necessita. Porque no dia de amanhã poderemos ter uma bela Constituição política, com normas muito avançadas, mas de nada adiantará se não tivermos um governo encabeçado por Gabriel Boric, que assegure esse processo de implementação da Constituição, junto com um Congresso Nacional que esteja em condições de chegar aos acordos necessários para implementar rapidamente a transição democrática que nunca tivemos”, ressaltou.
Conforme Gutiérrez, “estamos atualmente no momento da aprovação das regras que vão permitir a elaboração da norma constitucional. Mas já posso assinalar com segurança que vamos ter um Estado plurinacional. Isto é irreversível, que reconheçamos que o povo do Chile é um povo, mas que juntos existem os primeiros povos representados pelos Mapuche, Rapa Nui, Diaguita, Aymara, Quechua… Ou seja, existe uma diversidade de povos. Isso é irreversível. Só nos falta agora a norma que permita escrever a nova Constituição política. Já está claro que os órgãos políticos que estão se construindo, a partir dessa nova Constituição, serão paritários (homens e mulheres). Não há possibilidade de retroceder na concepção de que os órgãos como a Câmara de Deputados, o Poder Judiciário, todos os poderes que estabeleçam esta Constituição serão paritários. Não haverá mais um poder ou um órgão do Estado que seja composto apenas por homens. Isso te posso assegurar que não vai mais existir no Chile. Será garantido que em todos esses órgãos pelo menos a metade será composta por mulheres. Da mesma forma, haverá um reconhecimento à diversidade sexual, que vai haver uma proibição absoluta, total, da intolerância neste país. E isto é importante para pôr fim ao negacionismo da direita, sobretudo a que nega as violações de direitos humanos”.
“Também creio não haver dúvidas de que o país não vai ser mais um Estado centralista, unitário, no sentido de que a estrutura do país responda unicamente aos interesses do poder econômico. O que vai haver é um país diverso, um reconhecimento dos territórios, vai haver justiça territorial. Creio que aqui todas as regiões se sentirão contentes de participar porque tudo não vai estar mais centralizado em Santiago do Chile. Também as regiões do norte e do sul, que são muito isoladas, que têm pouca população e que têm tido pouca atenção por parte do Estado chileno, vão aparecer de verdade na geografia do nosso país. Creio que temos avançado de forma significativa e que isso vai ser notado de forma mais substanciosa quando começarmos a elaborar as normas permanentes que vão se incorporar à nova Constituição que submeteremos à votação no final desse processo Constituinte. [A nova Constituição será submetida a referendo popular antes de entrar em vigor]”, declarou.
“Não há possibilidade de garantir direitos sociais como o direito à habitação, à educação ou à saúde sem recuperarmos os bens comuns”
Para Gutiérrez, “não há possibilidade de garantir direitos sociais como o direito à habitação, à educação ou à saúde sem recuperarmos os bens comuns, porque são eles que podem garantir recursos para entregarmos ao povo o que o povo está pedindo”. “Não queremos somente uma Constituição que diga apenas que há o direito à saúde, os povos querem que esse direito lhes seja reconhecido, mas que também materialmente se veja como uma realidade. Que vão a um hospital e que sejam bem atendidos, que tenham médicos para atender. Não como agora que a saúde pública é uma saúde secundária em relação à privada, que é a que realmente importa”.
Na sua compreensão, “os povos do Chile vão exigir que o Estado lhes garanta realmente que seus direitos possam ser desfrutados diariamente, no cotidiano. Isto devemos ter presente no momento em que reconheçamos os direitos sociais, mas também mudemos o sistema tributário e recuperemos as empresas do Estado e os bens que nos pertencem”, para assim garantir o desenvolvimento em bases nacionais.
”Acredito que já temos uma experiência a respeito da política norte-americana, que nos tem considerado seu quintal. Não temos nenhuma razão de esperar a aplicação de uma política externa diferente do império, que segue nos tratando como sua colônia. Somos necessários para eles por várias razões, mas fundamentalmente pelos nossos recursos naturais e pela mão de obra barata”, protestou.
“Assim que os EUA, em diversos tempos, recorre a diversas fórmulas para intervir na política de nossos países”, protestou. Por isso, defendeu, “precisamos manter sempre vivo nosso anti-imperialismo. Este é o ABC do que temos que fazer, os que estamos comprometidos com as mudanças na América Latina. Junto com a integração, deve estar essa clareza de que somos anti-imperialistas. O império se mete nas mentes das pessoas e, lamentavelmente, isso faz muitos reagirem em função da ideologia que eles criaram. Não é fácil de superar o neoliberalismo culturalmente. Essa é uma complexidade que temos em nossos países e temos que assumir que existe. Daí a importância de uma Constituição que restabeleça a soberania popular, que restabeleça os direitos econômicos, sociais e culturais. Que em definitivo ponha o acento em que são os povos, os trabalhadores e trabalhadoras que geram as riquezas, os que devem ser a principal preocupação do Estado chileno. Penso, portanto, que cada um desses processos precisa manter-se vivo. Porque é assim que eles vão cada um se resguardando, para garantir a democracia e restabelecer a soberania popular”.
Diante deste embate, Gutiérrez considera ser de “muita relevância a presença do coletivo de comunicação ComunicaSul, acompanhando o processo eleitoral presidencial e parlamentar, e também vigilante do processo constituinte. É de suma importância, porque hoje estamos jogando no Chile o fim do neoliberalismo, onde surgiu estas políticas nefastas para os seres humanos em todo o mundo. Aqui por meio de uma ditadura se implementou esta irracionalidade econômica chamada de neoliberalismo e aqui é onde teremos de sepultá-lo. Acredito que o início do fim começa no dia 21 de novembro com as eleições presidenciais e do Congresso, processo que tem de ser consumado com a nova Constituição política”.
“Consequentemente, estar presente, vigilante e atento com o que está se passando no Chile é vital para a América Latina e para o mundo. Não é que queiramos ser o centro de nada, mas o que está se jogando é a criação, o início de políticas pós-neoliberais, o que vem depois do neoliberalismo. Isso quer dizer que a batalha do Chile continua”, concluiu.